(Crédito da imagem: Sawinery Woodworking)
Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…
ALGOSPEAK
O que é: Algospeak é a junção da palavra algorithm e speak, em inglês, ou algoritmo e fala, em português.
Trata-se de um truque usado pelas pessoas nas mídias sociais para confundir os algoritmos e filtros de moderação de conteúdo, modificando ou substituindo por termos codificados palavras consideradas “impróprias” ou “sensíveis” pelas redes.
Como ninguém sabe ao certo como os algoritmos funcionam – e na maioria das vezes as big techs não são transparentes sobre suas diretrizes e políticas de publicação para que as pessoas possam apelar em caso de censura —, os usuários vêm tentando dar o seu jeitinho, demonstrando que, sim, o techlash (confira também este verbete) é algo forte.
O termo algospeak já consta inclusive no Urban Dictionary, dicionário online de gírias e frases em inglês que existe desde 2009 e acumula mais de 4 milhões de definições.
Para que serve: Driblar a censura em relação a determinados temas, evitando que as postagens tenham baixo alcance – e consequentemente desmonetização — ou sejam até removidas pelos sistemas de moderação.
“Por receio desse tipo de ‘punição’, os usuários têm evitado usar e pronunciar completamente determinadas palavras em plataformas como TikTok, Twitter, Facebook, Youtube, Instagram e Twitch”, diz Karina Santos, coordenadora de Mídia e Democracia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). E na busca de alternativas, eles têm criado um novo dialeto. Segundo a especialista:
“Na medida em que fomos avançando o debate sobre as plataformas e o que circula em seus espaços, os sistemas algorítmicos de moderação de conteúdo passaram a ter cada vez mais impacto nas palavras que a gente escolhe e usa, dando origem a uma nova forma de linguagem orientada pela internet”
Ela ainda afirma que muitas vezes essas novas palavras que as comunidades de usuários criam acabam se tornando gírias e são assimiladas ao “dicionário” desses grupos.
Você provavelmente já viu essa artimanha por aí e não deve nem ter percebido. Quer um exemplo? Quando alguém usa um emoji de espiga de milho ou berinjela para falar de pornografia ou masturbação, com receio de que seu post seja censurado, está se valendo da algospeak.
A origem: Esta não é uma estratégia nova, apenas rebatizada. A partir da década de 1980, tornou-se comum usar números (S3X0, m0r73”, @bu$0 ou m4sturb4ç4o) e caracteres especiais (s-xo) ou mesmo erros de grafia para burlar a censura em fóruns, salas de bate-papo, jogos online etc. A técnica é conhecida como Leetspeak.
Outra forma de fazer isso é não mencionar palavras-chave ou nomes relacionados ao que se fala, muitas vezes com o intuito de ao fazer uma crítica não impulsionar ainda mais nas redes a viralização daquele assunto/pessoa, já que isso atrapalha a otimização dos mecanismos de busca do Google, o SEO (Search Engine Optimization).
A prática ficou conhecida como Voldemorting, termo cunhado pela pesquisadora Emily van der Nagel em um estudo publicado em 2018. O nome é uma referência ao bruxo da série Harry Potter, Lord Voldemort, a quem os personagens se referiam como “aquele que não deve ser nomeado”. Karina, do ITS, afirma:
“Adaptar a linguagem para evitar situações indesejáveis é uma prática anterior à internet. Muitas religiões evitaram pronunciar o nome do diabo para não convocá-lo, enquanto as pessoas que vivem ou viveram em regimes repressivos também desenvolveram suas palavras-chave para debater temas censurados”
Nos Estados Unidos, muitas postagens críticas ao ex-presidente Donald Trump referem-se a ele como Cheeto ou 45; e ao Twitter como birdsite ou ao Facebook como faceborg.
Influência do TikTok: Algospeak, por sua vez, teve sua ascensão durante a pandemia, quando mais pessoas começaram a se comunicar online e a linguagem da internet se tornou a referência.
De acordo com o site Know Your Memes, em dezembro de 2021 um usuário do Twitter chamado 0xabad1dea postou o seguinte: “Os algoritmos estão fazendo com que a linguagem humana seja redirecionada em tempo real…”, citando evidências de que um youtuber estava usando o termo “unalive (em português, “não vivo”) para falar sobre morte. No mesmo dia, outro usuário chamado LokiJulianus retuitou o post utilizando pela primeira vez a palavra algospeak para se referir a essa estratégia.
Com o envolvimento de Elon Musk no Twitter, o assunto de moderação e censura de conteúdo está em alta novamente. O uso do algospeak, no entanto, se popularizou no TikTok. Segundo Karina:
“Nesta rede, a principal forma de distribuição de conteúdo é por meio de uma página chamada ‘para você’ com curadoria algorítmica de nível temático. Ou seja, ter seguidores não garante que as pessoas vejam seu conteúdo. Isso faz com que seguir as regras de moderação se torne ainda mais crucial para que o conteúdo seja direcionado a quem se interessa”, diz. “Por isso, os usuários têm a necessidade de buscar estratégias com muita criatividade — inclusive inventando linguagens — para adaptar seus vídeos e publicações às necessidades do algoritmo.”
De acordo com uma reportagem do Washington Post escrita por Taylor Lorenz, no começo da crise de Covid-19, os usuários do TikTok e de outros apps começaram a se referir à pandemia como “turnê de reunião dos Backstreet Boys”, “panini” ou “panda express”, já que quando usavam a palavra “pandemia” suas publicações eram mal ranqueadas como uma prática dessas plataformas para combater a desinformação.
Outro caso citado pelo jornal revela que quando os jovens começaram a discutir sobre saúde mental, passaram a usar a já mencionada expressão “becoming unalive” (tornar-se sem vida) para falar abertamente sobre suicídio, um tema ainda tabu e combatido pelos censores das redes.
Ainda segundo artigo do Washington Post, muitos usuários no TikTok e também no YouTube adotaram o emoji de girassol para simbolizar a Ucrânia na hora de publicar sobre a invasão do país pela Rússia.
Quem usa: Esse recurso é utilizado principalmente por minorias e grupos marginalizados, que acabam tendo discussões importantes abafadas pelos algoritmos; entre populações de países que sofrem repressão política; e em comunidades extremistas ou milícias.
Pessoas negras utilizariam algospeak para discutir as opressões que enfrentam e conseguir fazer denúncias, trocando o termo “racista” por “branco” ou simplesmente mostrando a palma da mão em direção à câmera para mencionar pessoas brancas.
Já alguns youtubers LGBT passaram a suprimir o termo “gay” em suas gravações, em meados de 2017, época em que houve uma avalanche de anunciantes retirando patrocínio da plataforma de vídeos por receio de certos tipos de conteúdo. No TikTok, há criadores que substituem o termo comunidade LGBTQIA+ por comunidade “leg booty”.
Enquanto isso, usuárias lésbicas do TikTok adotaram a expressão “le dollar bean” em vez de “lésbica”. Parece estranho? Pois esta é a forma como o recurso de conversão de texto em fala da própria rede pronuncia a palavra.
A especialista do Instituto de Tecnologia e Sociedade explica que no meio da criação de novos dialetos também pode acontecer de um grupo adotar um termo já existente, mas com outro sentido, causando alguma confusão:
“A comunidade LGBT se apropriou de palavras — que antes eram utilizadas como ofensa — para empoderar e promover seu orgulho e sua luta. É o caso de ‘sapatão’ e ‘travesti’. O problema é que isso pode gerar ruídos, pois muitas vezes o algoritmo desfavorece esses conteúdos achando que são insultos, quando na verdade podem estar sendo utilizados para promover debates altamente relevante para a nossa sociedade”
Ainda mostrando as artimanhas para driblar os algoritmos, mas agora por parte de radicais, no ano passado, segundo o Washington Post, grupos antivacina no Facebook mudaram seus nomes para “dance party” e “dinner party”, enquanto no Instagram, os influencers antivax passaram a chamar quem se vacinava de “swimmers”. Já “pizza” e “Moana” foram usados para se referir às marcas de imunizantes Pfizer e Moderna. Outros exemplos são: “SA” para “sexual assault” (abuso sexual); “accountants” (contadoras) em vez de “sex workers” (trabalhadores do sexo); e “ouid” ou “oui’d” para no lugar de “weed” (erva, maconha).
Para não ficar apenas em exemplos do EUA, quando o governo chinês, no início da pandemia, bloqueou o uso da palavra Wuhan (nome da cidade que foi epicentro da Covid-19), os usuários passaram a usar “wh” para se referir à cidade Quando a logística da Cruz Vermelha chinesa estava sob escrutínio, a população apelidou a organização nas comunicações feitas nas redes de “dez vermelho”, pois o caractere chinês para 10 se assemelha a uma cruz (十shi).
E no Brasil?: Segundo Karina, os usuários brasileiros muitas vezes adotam os dialetos já criados em inglês, como “seggs” para falar de sexo ou “blink na lio” para link na bio” (geralmente isso acontece no TikTok, onde as pessoas usam esse recurso para direcionar seus seguidores para outras redes “rivais”). Mas por aqui, conta a especialista, o que ainda funciona melhor é o Leetspeak.
De acordo com Gustavo Maia, criador do portal Cannabis Monitor BR, monitor de notícias e eventos relacionados à maconha no Brasil:
“Nós praticamente não usamos esses truques nas redes e realmente sofremos a consequência da censura. Mas muitos perfis do universo canábico fazem essas alterações”
Os exemplos mais comuns, neste universo, são substituições como: C4nn4b1s, Dr0g4s, M4c0nh4 e C4n4b1c4. E ninguém escapa dos algoritmos. Há relatos de médicos que tiveram suas contas derrubadas pela rede de Mark Zuckerberg por falarem de cannabis medicinal.
Katia Cesana, CEO da Xah com Mariaz, hub de empreendedorismo feminino canábico, diz que a empresa costuma utilizar os termos “heemprender” ou “hempreendedoras” (de hemp, cânhamo em português) para evitar escrever ou falar empreendedorismo com cannabis ou algo mais explícito a fim de evitar censuras.
Já a COO Danila Moura conta que o próprio nome da empresa foi pensado para se referir à cannabis de forma indireta:
“Mariaz é uma das formas utilizadas para designar as mulheres que cultuam Santa Maria, nome dado à maconha em uma linha do Santo Daime, em ritual feminino dedicado à planta. É comum a comunidade canábica utilizar palavras como verde, erva, Maria (de Marihuana) e expressões históricas como riamba, makana, bhang, falar que vai fazer um “ritual” ao invés de “consumir maconha” e por aí vai”
As empreendedoras afirmam ainda que todos os posts de divulgação do programa de empreendedorismo da empresa, o Hempreenda Xah, que tentaram patrocinar no Instagram foram negados pela rede social.
“Um site de compra de ingressos já bloqueou as nossas vendas porque os ‘termos’ não eram adequados à política, mesmo sendo um evento canábico de educação totalmente lícito. Argumentamos no SAC, mas não fomos liberada e a conta da Xah foi proibida de atuar com vendas nessa plataforma”, diz Danila.
“Já encaramos problemas também em ferramentas de disparo de newsletters que não enviaram nossos e-mails por ‘ferir’ a política, mesmo que a comunicação estivesse propagando conteúdo educacional lícito sobre cannabis. Tivemos que pesquisar até achar outra plataforma mais adequada”, complementa Katia.
Essa caça às bruxas — ou melhor, às palavras consideradas tabus — foi tema de um artigo do publisher do Draft, Adriano Silva, quando a comunidade Share Your Sex teve sua conta deletada pelo Facebook, em julho de 2021. Poucos dias depois, pressionada, a rede voltou atrás na decisão.
Vantagens: Enquanto os truques não são contornados ou aprendidos pelos ferramentas moderadoras, que criam listas de termos “problemáticos”, o algospeak permite que os usuários burlem o sistema e consigam ampliar vozes e discussões à revelia das big techs que controlam as mídias sociais.
“Embora haja essa ideia de um aprendizado de máquina sofisticado, geralmente hoje ainda é apenas uma lista de palavras consideradas problemáticas”, diz Karina, do ITS. “Por isso, os algoritmos acabam suprimindo as conversas erradas e silenciando comunidades marginalizadas e debates importantes.”
A especialista arremata:
É consenso a necessidade de que a moderação seja acompanhada por revisão humana para que se considere o contexto em que as palavras estão sendo utilizadas. Mas ainda não há investimento suficiente em profissionais para essas atividades”
Para os curiosos, existe um site, o Zuck Got Me For, em que é possível enviar conteúdos banidos pelos algoritmos do Instagram.
Desvantagens: Danos colaterais ao discurso literal, pois o contexto, em uma escala global que leva em conta diferentes idiomas e “dialetos”, acaba se perdendo ou criando ruídos de interpretação e comunicação.
Um exemplo dessa confusão é o termo “sextou”, usado no Brasil para festejar a chegada da sexta-feira. O problema é que contas estrangeiras também usam #sextou (lê-se “sex to you”) para se referir a publicações de vídeos e imagens com conteúdos sexuais. Conclusão: o Instagram baniu essa hashtag.
Outra desvantagem do algospeak é que ele cria uma falsa sensação de liberdade de expressão, enquanto o que seu uso denota é justamente o contrário. Como escreve Jamie Cohen, especialista em cultura digital e estudioso de memes, no Medium:
“Se estamos continuamente fugindo dos censores não humanos que decidem o que é ‘apropriado’ em sua plataforma, podemos ter que dar um passo para trás para perceber que não estamos no controle de nossa linguagem nesses espaços. Se estamos dispostos a nos esconder do algoritmo em algo tão divertido quanto o TikTok, isso não é um bom presságio para sistemas de controle algorítmicos futuros e mais autoritários […]”
E se por um lado a tática pode beneficiar grupos minorizados, também consegue potencializar postagens racistas, homofóbicas, neonazistas etc.
“Isso mostra que essa estratégia de moderação agressiva não é necessariamente uma solução real e eficaz para casos de mau comportamento, assédio, abuso e desinformação”, diz Karina. “Não que os esforços para acabar com isso sejam infrutíferos, mas nos sinalizam que precisamos pensar em como desenvolver melhores ferramentas, políticas, práticas e protocolos nas redes. A tentativa de higienizar a internet ainda é uma ideia muito complicada.”
Para saber mais:
1) Acesse o artigo do The Washington Post: “Internet ‘algospeak’ is changing our language in real time, from ‘nip nops’ to ‘le dollar bean’”;
2) Leia no MIT Technology Review: “Welcome to TikTok’s endless cycle of censorship and mistakes”;
3) Conheça na Wired mais sobre: “Welcome to Voldemorting, the ultimate SEO Dis”
4) No Medium, veja o artigo de Jamie Cohen sobre algospeak intitulado: “Why We’re Creating Language to Hide from Tech’s Censorship Systems”
5) Também no Medium. confira o artigo: “Of ‘Algospeak’ and the Crudeness of Automated Moderation”
6) Acesse aqui a edição da newsletter da The Shift que abordou o tema;
7) Também em português, há disponível o artigo: “Algospeak: driblando a moderação de conteúdos nas redes sociais”, no CEPEDI (Centro de Estudos e Pesquisas e Direito e Internet);
8) Veja a lista de hashtags proibidas pelo Instagram;
9) Leia o artigo “Algospeak: a new language to circumvent AI-powered content moderation”, do Multilingual.