Uma vez por mês, a empreendedora Ana Ribeiro, 32, recebe doações de absorventes, sabonetes e creme dental, entre outros itens de higiene, e monta kits que são distribuídos para mulheres em situação de vulnerabilidade no centro da capital paulista.
A ação, batizada de “Menstruação e Dignidade”, é uma iniciativa da Ofício, varejista de produtos artesanais e criativos que mantém uma loja física, um e-commerce e uma feira de rua. O negócio é de mulheres para mulheres, e tem uma função social em paralelo ao lucro. Ana, fundadora da Ofício, explica:
“O propósito é gerar autonomia e renda para as mulheres como forma de combate ao machismo e violências de gênero. Somos um negócio pró-mulheres, e abraçamos todas elas”
Criada em 2018, a Ofício parece um grande coletivo. A empresa conta com uma rede de 115 artesãs, que desenvolvem uma ampla gama de produtos.
Entre elas estão a designer Mari Takata, da marca Do Barro, que faz itens de cozinha e decoração em cerâmica natural; Franncine de Miranda, do Estúdio Luares, de ilustrações, com foco em aquarelas; Lena Amano, da Yôi Omôidê, de culinária afetiva e tradicional japonesa; e o coletivo Trans Sol, que reúne mulheres trans e travestis que desenvolvem roupas, acessórios e bordados.
Para participar, há alguns critérios: ser mulher, criar produtos manuais e autorais e ter qualidade. “Também pedimos boas práticas de sustentabilidade ambiental, como baixo uso de plásticos e geração de resíduos”, diz Ana.
Na rede, há artesãs de 18 a 60 anos. As profissões são as mais diversas: professora, atriz, analista de telecomunicação, designer gráfica… Fernanda Campelo, por exemplo, foi modelo e, aposentada das passarelas, se dedica a macramês e acessórios de pedras naturais com sua marca Fer Campelo.
A Ofício nasceu como feira de rua, realizada mensalmente na região da Vila Buarque, próximo ao Parque Minhocão. A ideia surgiu de uma necessidade de Ana, que fazia ilustrações em aquarela mas não conseguia espaço nos eventos consolidados da cidade.
Funciona assim: cada artesã paga uma taxa de inscrição, monta o seu estande e fatura à vontade, sem pagar comissão, ao longo de seis horas de evento.
Em média, o custo de realização de cada feira é de 30 mil reais. As despesas incluem equipamentos de som, tendas, gradis e limpeza, que é feita por mulheres em situação de rua que vivem nas redondezas. Aliás, todas as pessoas contratadas são mulheres.
“As feiras de rua são um importante canal de vendas para artesãs, principalmente para as iniciantes. É o momento de se apresentar para público, mostrar os diferenciais e a história da marca e ganhar os primeiros clientes”
Ana recebe uma remuneração fixa pela produção. Organizar tudo, diz, dá trabalho: é preciso lidar com burocracias da CET e outros órgãos da Prefeitura, esmiuçar a playlist que toca no alto-falante para pagar taxas do ECAD, relativas aos direitos autorais das músicas que rolam na feira… “Mas todo o esforço vale a pena”, afirma.
São Paulo tem uma cena cultural forte, e muita gente que consome produtos criativos. Assim, até o começo de 2020 a Ofício vinha bem, com um faturamento médio de 110 mil reais a cada edição.
Porém, logo veio a pandemia… Com as medidas de distanciamento social, as feiras de artesanato foram suspensas. De uma hora para outra, Ana e as artesãs se viram de mãos atadas.
Como manter um negócio quando seu local de atuação está embargado? De cara, a Ofício fez o que a grande maioria dos negócios criativos fizeram: lives.
Entre abril e junho de 2020, a empresa criou o projeto Capacitar, com aulas online de gestão, sustentabilidade e cooperativismo para artesãs.
O passo seguinte foi lançar o e-commerce da marca, que foi ao no segundo semestre do mesmo ano. Uma curiosidade: o site foi desenvolvido pela artesã Renata Martins, da marca de arte botânica e.fem Flora, que também é programadora. Além disso, Ana havia trabalhado na Ricardo Eletro e sites de leilões antes de empreender.
“Uma vez que a experiência nas feiras é comprar tudo num só lugar, começamos a vender caixas temáticas, com produtos complementares de marcas diferentes, para impulsionar a loja online”
A Caixa Meditar, por exemplo, continha máscara para dormir, creme para as mãos e incensos naturais. A Caixa Morada era recheada com difusor de aroma, capa para almofadas e xícara de cerâmica.
E como o encantamento vem dos detalhes, os produtos eram acompanhados por adesivos com frases inspiracionais, como “O futuro é feito à mão por mulheres”. A inovação deu tão certo que a Ofício fechou uma parceria com a Hering, que comprou 100 caixas para distribuir para seus colaboradores.
A tática digital também reforçou a imagem da marca nas redes. Hoje, o Instagram da Ofício possui 23 mil seguidores.
Quando 2021 começou, as feiras ainda estavam paralisadas, mas Ana tinha uma certeza: a Ofício tinha sobrevivido a pandemia – e o negócio não ia acabar.
Com espírito inquieto e alma de artista (além de uma graduação em artes visuais pela Universidade Federal de Rio Grande), Ana e as artesãs decidiram abrir uma loja física.
A parte boa: havia muitos imóveis comerciais vagos no centro de São Paulo. A parte não tão boa assim: na luta para se manter viva, a Ofício tinha queimado todo o caixa e não tinha dinheiro para investir.
A solução foi fazer uso da coletividade do negócio, vender rifas de artesanatos e levantar dinheiro. Deu certo. A Ofício alugou um imóvel numa travessa da rua que abrigava as feiras. “Acontece que o local estava meio… precisando de uma reforminha”, diz Ana.
Lembra do lance de “o futuro é feito à mão por mulheres”? Então, não era somente uma boa comunicação. Em semanas, Ana e as artesãs reformaram a loja – sozinhas, e no braço. Ela relembra:
“Pintamos as paredes, instalamos as portas e montamos os móveis. A gente gosta do ‘faça você mesmo’. Em março, a loja estava linda e abrimos as portas”
Os novos canais de venda trouxeram desafios. Como criar estratégias de diferenciação em cada ponto de venda e, ao mesmo tempo, oferecer uma experiência alinhada ao propósito da marca?
Ana explica as diferenças. A loja física é um comércio de bairro, com vínculo afetivo. A cada cliente, as vendedoras perguntam o nome, explicam a proposta da marca e contam as histórias das mulheres que desenvolvem os produtos.
No e-commerce, o diálogo é construído via user experience e storytelling. Na comunicação, é comum encontrar mensagens sobre sonhos, movimento de mudança, transparência e consumo político.
“Há também um esforço para explicar que é uma loja colaborativa, feita por uma rede de artesãs – e não um marketplace”
Um detalhe importante: loja física e a online são integradas. Ambas oferecem os mesmos produtos, de 40 marcas, e compartilham o mesmo estoque. O que é comprado no site sai da loja física.
A feira, por sua vez, tem suas particularidades. Na rua, em vez da Ofício, quem se encarrega da venda é a própria artesã, que afinal conhece seu produto melhor do que ninguém. Ali, ela pode aceitar encomendas, personalizar itens e fica responsável pelo pós-venda, como trocas e devoluções.
Falando nas feiras, a Ofício voltou às ruas. Embora mais enxutas, com 50 marcas, as edições realizadas em novembro e dezembro faturaram 100 mil reais cada devido a sazonalidade.
Algumas artesãs adaptaram seus negócios. Beatriz Santos, da marca de moda Lanai, criou um serviço de envio de mala de roupas para a casa da cliente, que escolhe os itens que deseja e devolve o restante. Sabrina Costa, do ateliê botânico Die Blume, além de varejista, lançou um novo serviço de assinaturas de plantas.
Segundo Ana, além das vendas, o retorno da feira foi muito bom por marcar o reencontro das artesãs:
“O trabalho artesanal é muito solidário. Por isso falamos muito sobre a feira ser um momento de festa e encontros de pessoas que amam o que fazem com outras que valorizam seus trabalhos”
Em 2022, a Ofício ainda não fez feiras devido ao aumento de casos de Covid-19 e Influenza. Caso o cenário melhore, é possível que em março ela ocupe a rua novamente.
Em meio às incertezas em torno do evento presencial, os demais canais de venda vêm mostrando fôlego. Hoje, a loja física representa 80% das receitas. Em 2021, a Ofício faturou 400 mil reais, oito vezes mais do que no ano anterior. A expectativa é atingir 800 mil reais ao longo de 2022.
Analisando os últimos dois anos, Ana diz que sua maior preocupação foi a Ofício não conseguir gerar a renda necessária para as artesãs levarem suas marcas adiante:
“Não manter vivo o propósito da Ofício poderia abalar a confiança mútua que existe entre eu e as artesãs… Trabalhar com o sonho de outras pessoas é uma enorme responsabilidade”
Com o tempo, as preocupações deram espaço à esperança. Nenhuma marca fechou – e, melhor ainda, nenhuma artesã foi vítima da Covid. Elas seguem vivas, juntas e fortes, tocando seus negócios – seus ofícios –, que são sinônimos de afeto, satisfação e prosperidade.
Até os 6 anos, Sioduhi se comunicava apenas em tukano, língua falada por seu povo, os piratapuya. Hoje, o estilista se baseia nas tradições indígenas para produzir roupas com fibras da Amazônia e um corante têxtil à base da casca da mandioca.
Anne Galante só conseguia se concentrar nas aulas quando tinha linha e agulhas nas mãos. Hoje, ao lado da irmã, Ana, ela empreende a Señorita Galante, que combina artigos de decoração, aulas de crochê e tricô online e projeto social.
O luto ainda é um grande tabu. Para ajudar tutores a superar a morte de seus pets (ou mesmo mães e pais que lidam com a perda de um filho), a artesã Malu Límoli cria delicadas “joias afetivas” que encapsulam e eternizam amostras de DNA.