As três décadas e meia no exterior e a pouca repercussão no Brasil do campo de atuação que escolheu – as artes plásticas – explicam, um tanto precariamente, o fato de o carioca Eduardo Kac, 61, ser tão pouco conhecido em seu país de origem.
Mas as criações de Kac, que desde 1990 está radicado em Chicago, onde dá aulas no The Art Institute, não passaram batido para algumas “antenas” como o jornal The New York Times e o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do best seller planetário Sapiens, de 2012.
Na virada do ano, o jornal estadunidense fez uma grande reportagem sobre Kac, aproveitando-se da iminência do lançamento de uma missão espacial não tripulada à Lua. O foguete Vulcan Centaur decolou em janeiro de 2024 e, depois de se desprender da cápsula lunar, seguiu rumo ao espaço profundo. A bordo dele se encontra uma obra de Kac: o poema/palavra feito em holografia Ágora, concebido lá atrás, em 1986, com a proposta justamente de um dia vir a habitar o espaço — e, quem sabe, chegar a ser encontrado por alguma civilização alienígena.
Já a menção de Kac por Harari, feita precisamente em Sapiens, um livro que dá conta da “aventura” humana na Terra, joga luz sobre a obra mais polêmica do artista, a coelha Alba (ou, oficialmente, GFP Bunny), criada em laboratório a partir de um embrião de coelho albino e genes de uma água-viva fluorescente. O “cameo” genético concebido e contratado por Kac deu a Alba, em sua vida terrena, a propriedade de mostrar-se fluorescente quando exposta à luz azul.
Alba foi o exemplo escolhido por Harari para mostrar que o instrumento da seleção natural, utilizado para a evolução das espécies na Terra ao longo de 4 bilhões de anos, enfrenta agora um “desafio completamente diferente”.
Pensar fora da caixa, expressão tão difundida (e mal entendida) no mundo corporativo, é, como se vê, “default”, método ordinário de criação de Kac, que desde os anos 1980 busca formas de expressão que transcendam os limites normalmente aceitos de seu mercado.
A trajetória de Kac vem sendo marcada por essa busca. Houve o happening, a pornografia, a holografia, a telepresença, as possibilidades de comunicação pré-Internet, a arte espacial (ou para ambientes de gravidade zero) e a arte transgênica – ou bioarte, como prefere o artista.
Ágora, o “holopoema” que, se descoberto, pode um dia ser raro registro de uma estranha civilização, não é o único artefato de Kac a habitar neste momento o espaço.
Em 2017, Telescópio interior foi concebido pelo carioca e executado dentro da Estação Espacial Internacional (EEI) pelo astronauta francês Thomas Pesquet. Comissionado por Kac, Pesquet montou uma peça de papel que, aproveitando-se do ambiente de gravidade zero, tanto pode exibir a palavra “Moi” (“eu”, em francês) como uma figura humana.
A vontade de alguns artistas em romper primeiro com o suporte e, mais à frente, com a própria ideia de arte como representação, marcou as artes moderna e contemporânea ao longo do século 20.
Kac inscreve-se nessa tradição pelas quais passaram o francês Marcel Duchamp (1887-1968), que levou para o ambiente sacralizado dos museus objetos de uso cotidiano; o alemão Joseph Beuys (1921-1986), com suas performances viscerais e pioneiras e seu ativismo ambiental importado para o espaço expositivo; e o brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980), com seu plano de fazer do espectador um participante da atividade criadora.
Em entrevista com o Draft por videochamada desde Chicago, Kac se disse alinhado ao projeto de outros artistas que buscam “não simplesmente trabalhar com estéticas recebidas – processos, formas, conceitos e categorias criados por outros”.
Há ainda em seu trabalho, no seu entender, “uma articulação teórica e o desenvolvimento de uma forma que não é criada apenas uma vez e abandonada”. Nesse sentido, ele se vê mesmo próximo de Duchamp e Oiticica, citados pelo repórter como possíveis aproximações.
Na conversa, o artista se mostrou menos preocupado com os avanços da inteligência artificial, tema onipresente hoje na mídia e nos foros tecnológicos, do que em certo “retrocesso da inteligência natural”, processo supostamente deflagrado por um cotidiano das pessoas marcado por “interrupções” constantes.
Essas interrupções sabotam a atenção e impedem ou dificultam o “aprofundamento do pensamento”, e “parecem ter impacto direto na habilidade de leitura”. Evocando sempre uma visão talvez holística, ou relativista, ele não vê isso “necessariamente como perda”.
“Todas as gerações percebem a mudança como perda. Isso vemos ao longo da história, não apenas nos séculos 20 e 21. As novas gerações entendem a mudança como característica”
De qualquer forma, ele reconhece nas interrupções “dificuldade de engajamento com livros, com a escrita e com os processos intelectuais que requerem um trabalho de duração mais extensa”.
Quanto ao fato de o domínio da IA vir a se concentrar na mão de pouquíssimas pessoas ou empresas, e isso eventualmente poder se mostrar pernicioso para o futuro da humanidade, como apontam não poucos autores, Kac identifica aí um “processo que se repete regularmente”:
“A tecnologia não é desenvolvida de maneira abstrata. Empresas o fazem fundamentalmente para ter retorno financeiro. É um mecanismo bem conhecido e não há nada particular em relação à IA nesse sentido.”
O artista, porém, faz uma ressalva:
“É verdade que há um certo caráter predatório no processo, já que depois de incorporar todos os textos e imagens a que conseguem ter acesso, as empresas começam a gerar novo material por IA e o incorporam ao modelo. Por conta dessa voracidade, desse caráter onívoro da IA, pode ser desencadeado um processo de autossemelhança”
Esse fenômeno já é visto em situações em que personagens fictícios e histórias não ancoradas na realidade passam a fazer parte do discurso de diversos profissionais e disciplinas.
Kac mencionou, por exemplo, a tentativa recente de um advogado nos Estados Unidos de se servir, na Corte, de uma jurisprudência baseada em eventos não existentes, mas informadas por um modelo de IA. O profissional se esqueceu apenas de confirmar a veracidade dos fatos.
Uma copiosa reprodutibilidade — embora sem o desvio patológico da autossemelhança — animou a obra de Kac no “pós-Alba”.
A coelha, por sinal, passou “do epicentro de uma controvérsia planetária a ícone da cultura pop”, nas palavras do artista, aparecendo em menções mais ou menos explícitas em seriados como Big Bang Theory e Os Simpsons, e ainda nas obras dos escritores Margaret Atwood e Michael Crichton.
A repercussão talvez não tenha surpreendido Kac, mas pode ter tido o condão de tirá-lo de sua postura algo estoica em relação ao mundo.
O artista disse ao Draft que tenta observar a realidade que o cerca com tranquilidade de alma, ou com “ataraxia”, termo ligado ao pré-socrático Demócrito e que, depois, com os céticos, passou a denominar um estado de indiferença às paixões – para os budistas, mais contemporaneamente, há o conceito, muito próximo, do desapego.
“Como cidadão privado, eu procuro pautar a minha vida um pouco como Demócrito, que é tentar buscar a ataraxia, um estado de equilíbrio”, afirma o artista. E prossegue:
“Você não pode se negar a certas experiências, como a tristeza extrema, mas tem de saber processá-las, lidar com elas. Não ficar preso a esses momentos, seja de tristeza ou de euforia, mas entender que eles são transitórios. Celebrar os momentos de felicidade, mas entender que isso também passa, e viver a tristeza entendendo-a não como estado permanente”
A ataraxia, como lembrou o repórter a Kac, levava os filósofos que dela lançavam mão a uma suspensão do juízo, o que, segundo artista, não é necessariamente verdadeiro com ele.
De toda forma, não foi com a “imperturbabilidade da alma” dos céticos que ele se encontrou ao não poder ficar com Alba após seu nascimento, como estava previsto. Ocorre que o diretor do laboratório francês onde Alba foi produzida impediu a saída do coelho e sua viagem para Chicago — “censurando a obra”, como diz Kac.
“Tudo o que se escreveu sobre a vida dela é especulativo. Coelhos vivem no máximo oito anos; a maioria, cinco. O que dá para dizer é que ela viveu no máximo até 2008. E, vivendo em laboratório, não recebeu o afeto que eu havia planejado para sua vida, que eu acredito seria mais prazerosa com cuidados pessoais, em casa”
O entrevistado não chegou a dar um “teaser” do que podem ser os próximos passos de sua obra, mas para quem está em São Paulo, uma amostra dela pode ser conferida – até a próxima segunda, 3 de junho — em uma exposição coletiva de arte digital no Centro Cultural Banco do Brasil.
O trabalho em exibição no CCBB também faz alusão a Alba. Num vídeo que, visto do espaço, ora se aproxima, ora se afasta do teto de dois prédios, um no Centro do Rio e outro em Palma de Mallorca, na Espanha, veem-se representações da coelha.
A exposição se organiza ainda em torno do tema “Oceanos”, e Kac destaca a água, que sobressai na visão distante da Terra de sua imagem, a razão de vida do planeta.
“Marte, que teve oceanos em sua superfície, não tem mais vida. Já a Terra, ao ser contemplada do espaço, sugere uma linha azul muito fina, a linha da atmosfera, que vem mantendo tudo intacto embaixo. Sem atmosfera estaríamos expostos ao frio, à radiação, ao calor do sol”, diz Kac. “Ao olhar a esfera [da Terra] flutuando na imensidão do cosmos, assumimos que ela sempre estará lá, mas isso depende de cuidados, depende de entender que a água, por exemplo, não é um recurso eterno.”
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