Os primeiros celulares começaram a ser vendidos no Brasil em 1990. Eram grandes e caros; com o avanço da tecnologia, foram se tornando menores e mais acessíveis. O mesmo aconteceu com câmeras fotográficas, computadores e dezenas de aparelhos eletrônicos. O problema é que eles também se tornaram cada vez mais substituíveis – ou descartáveis.
Quando descartados, parte desses equipamentos vai para o lixo comum e a outra parte é reciclada, já que eles estão cheios de materiais que podem ser reutilizados. A questão é que é possível fazer mais do que reciclar – e é isso que a Metarecicla propõe.
O nome da startup vem de metareciclagem, um conceito que foca na reciclagem da tecnologia, e não apenas da matéria física. José Sales Neto, 50, idealizador e coordenador de projetos da Metarecicla, define o processo:
“Quando um reciclador vê um parafuso, ele vê ferro. Quando um metareciclador vê um parafuso, ele vê a tecnologia da rosca, que pode ser usada para anexar um material ao outro”
Em outras palavras, explica Neto, “não é o ferro que importa, é a tecnologia que está nele”.
O TRABALHO COM A POPULAÇÃO VULNERÁVEL FOI A SEMENTE PARA DESENVOLVER A METARECICLA
Neto cursou produção gráfica na Escolas Profissionais Salesianas, em 1987, e atuou por muitos anos como produtor multimídia, montando estruturas para canais de TV, rádio e os primeiros streamings na internet.
A semente para as atividades com resíduos eletrônicos veio do trabalho voluntário com pessoas em situação de vulnerabilidade na Casa Cor da Rua, na cidade de São Paulo.
O projeto reunia atividades de transformação de materiais que normalmente iriam para o lixo comum em peças de arte, com o objetivo de gerar renda e capacitar pessoas vulneráveis, em situação de rua e liberdade assistida.
Neto dava aulas de Teoria das Cores e Construção da Forma, Desenho e Design. Sua esposa. Karina Sales, 27, produtora visual gráfica e diretora da Metarecicla, produzia mosaicos junto aos participantes do projeto.
“Como eu trabalhava com tecnologia, as pessoas me tinham como referência: ‘Neto, tô com um material lá em casa e não sei o que fazer. Você pega?’ E comecei a pegar”
No descarte vinham materiais de boa qualidade que ele muitas vezes usava ou até vendia. Foi quando começou a perceber que aquilo poderia virar um negócio.
AO COMPREENDER O SIGNIFICADO DO CONCEITO, ELE COMEÇOU A ESTUDAR E APROFUNDAR O TRABALHO DE METARECICLAGEM
Desde 2008, Neto e Karina participam da Campus Party Brasil, um dos maiores festivais de tecnologia e inovação do país. Foi na edição de 2010, conversando sobre o trabalho de coleta e reutilização de resíduos eletrônicos, que ouviram falar em metareciclagem pela primeira vez.
“Uma pessoa que já tinha contato com o tema me identificou como metareciclador”, conta Neto.
Desde então, o interesse sobre o tema foi crescendo. Na Campus Party Brasil de 2017, o casal participou de um hackathon proposto pela ONU para desenvolver soluções para os Objetivos Sustentáveis do Milênio (ODS).
A atividade era um chamado para a elaboração de modelos de negócio e empreendedorismo relacionados aos temas dos ODS. Foi ali que eles estruturaram a ideia da metareciclagem como um negócio.
“A gente desenvolveu a ideia mínima viável e criou um serviço de coleta eletroeletrônica gratuita. Coletamos o material e, em troca, garantimos que ele não vai ser tratado como rejeito. Mais que isso: que ele vai ser transformado em educação”
Com a elaboração do modelo de negócios, o casal voltou para casa disposto a colocar a mão na massa.
COM MATERIAIS COLETADOS GRATUITAMENTE, A EMPRESA ENSINA JOVENS A TRANSFORMAR RESÍDUOS EM NOVAS TECNOLOGIAS
A coleta gratuita de resíduos eletroeletrônicos é fundamental para a organização de todas as outras atividades da empresa.
No início, as coletas eram realizadas a cada dois meses. O intervalo entre cada coleta foi diminuindo e a quantidade de material que chegava, aumentando.
“Hoje acontecem coletas quase todos os dias. No último mês foram dez toneladas”, afirma Neto. O transporte é feito através de serviços de aplicativos e acompanhada via celular.
A partir do material coletado são organizados os outros serviços. Um quarto do material que chega é recuperado e retorna ao mercado: é o caso de celulares sem bateria, computadores sem teclado e outros tipos de equipamentos.
“Usamos a economia circular, que nada mais é do que a reutilização de um material usado. Isso dá condições a uma pessoa de ter algo por um preço barato, você começa a dar acesso de consumo. É um impacto importante, mostra que a empresa não está desligada do seu entorno”
Outros 25% do material são utilizados para montar kits de robótica de baixo custo. Os kits são o principal produto da Metarecicla – e onde a startup consegue maior retorno financeiro.
“Se uma impressora descartada vale 3 reais no ferro velho, com dois ou três motores de impressora eu tenho um kit que vale 50 reais. E se eu dou um treinamento de robótica com o meu kit, isso vale 1 500 reais”, explica Neto.
Os treinamentos são baseados na educomunicação, uma tecnologia social que tem como meta a criação de ecossistemas comunicativos. A proposta é fugir das tradicionais aulas expositivas e fazer com que os alunos se apropriem do conhecimento para, então, fazer algo com ele de forma autônoma.
Em um paralelo, seria como ensinar física e química não por fórmulas, mas por meio das suas aplicações práticas.
“O desmonte é a principal forma de apropriação da tecnologia. Se um aluno aprende a desmontar para depois remontar com o seu significado, ele vai estar sempre preparado para compreender, ressignificar e intervir”
Motores, sensores, LEDs, eletroímãs, fios e circuitos são alguns dos materiais que costumam compor os kits.
Outros 25% do material servem como estoque, para que a Metarecicla sempre tenha peças disponíveis. Os 25% restantes são utilizados para fortalecer parceiros da startup, como a Coopermiti, cooperativa de gestão de resíduos, e a Escola Criativa Capadócia (na favela de mesmo nome, em Brasilândia, bairro da zona norte de São Paulo), uma iniciativa construída por Neto e Karina na comunidade em que nasceram.
“É uma escola de contraturno. Lá as crianças aprendem sobre cultura indígena, segurança alimentar, robótica, criação de roteiro e vários outros projetos.”
A partir do trabalho na escola o casal desenvolveu ainda um novo produto: a exposição interativa.
Em uma bancada cheia de materiais extraídos de lixo eletrônico, eles ajudam os alunos a refletirem sobre meio ambiente e desenvolverem consciência para o consumo. Em seguida, mostram como cada uma daquelas peças pode ser reutilizada.
AMEAÇADO PELA PANDEMIA, O NEGÓCIO GANHOU IMPULSO COM UM APORTE DA PREFEITURA DE SÃO PAULO
A empresa passou por momentos difíceis durante a pandemia da Covid-19. Neto conta que, pouco antes da chegada do coronavírus, eles tinham fechado um projeto “para levar robótica e metareciclagem para todas as escolas do estado de São Paulo”.
A pandemia suspendeu a iniciativa — mas não as atividades da Metarecicla.
“As coletas continuaram nesse período, porque as pessoas estavam em casa e voltaram a olhar para o seu espaço. Mas o nosso principal produto econômico, que é o educacional, foi afetado”
Apesar das dificuldades, em 2021 a empresa recebeu um aporte de 30 mil reais da Prefeitura de São Paulo, por meio do programa Vai Tec.
Com o recurso, Neto e Karina alugaram um espaço em Brasilândia para o processamento dos resíduos. Na parte de baixo fica a estação de metareciclagem, onde são recebidos os materiais. Em cima, uma área livre para a criação das peças.
A METARECICLA QUER AMPLIAR SEU ALCANCE A PARTIR DE UM MODELO DE NEGÓCIO COLABORATIVO
Atualmente, a Metarecicla tem um modelo de negócios híbrido, realizando vendas B2B e B2C. “A gente trabalha com o governo, na formação de professores, e com os consumidores finais, na venda de material de robótica e informática”, explica Neto.
A equipe conta com 12 funcionários. Em momentos de execução de grandes projetos, o número de pessoas trabalhando na Metarecicla pode dobrar ou triplicar.
Recentemente, a startup fechou um contrato para a formação de cerca de 180 professores que vão trabalhar nas Fábricas de Cultura 4.0 do estado de São Paulo, espaços que oferecem atividades ligadas às artes presenciais e digitais.
A ideia é que os professores trabalhem o conceito de metareciclagem com os alunos. Além do impacto ambiental causado pela destinação de materiais, novas propostas podem ser criadas: peças de teatro com iluminação em led, espetáculos com automação, entre outros.
A intenção da Metarecicla é estar nos quatro cantos de São Paulo, mas Neto assegura que o crescimento não vai acontecer a qualquer custo:
“Não queremos expandir como uma franquia, mas com parceiros de trabalho, em um modelo de negócio colaborativo”
Para ele, startups como a Metarecicla são o futuro.
“Nossa empresa está totalmente conectada com o meio ambiente e as pessoas. Nós não somos um modelo de negócio que ganha dinheiro e [depois] investe em educação e ecologia. Para eu ganhar dinheiro, invisto em educação e impacto socioambiental. É indissociável.”
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