É numa casa da década de 1930, de fundos para uma vila no bairro dos Jardins, em São Paulo, que fica a base e o “escritório” do Soul Kitchen, um projeto gastronômico que organiza festas sempre unindo comida e música. Os eventos são itinerantes e falaremos deles a seguir, mas Alexandre Pernet, 45, publicitário e um dos fundadores, diz que é ali, na cozinha, chamada Lab, que o Soul Kitchen sempre “aterrisa” de volta. O espaço foi inaugurado em agosto do ano passado e pode ser alugado para jantares para até 50 convidados.
Mas o Soul Kitchen (batizado em homenagem a um filme alemão homônimo) é mais do que o Lab. Em 2016, eles realizaram 77 jantares-experiência pelo país. Essa história começou em 2010, quando Alexandre e o empresário Geraldo Mattar, 44, começaram a se reunir semanalmente para cozinhar para os amigos. “Para mim, cozinhar sempre foi sinônimo de casa cheia, com vatapá e caruru na casa da minha mãe, que é baiana. Eu sou roots, gosto de preparar bife à parmegiana, rabada e estrogonofe”, diz Alexandre. “O Gegê (Geraldo) é de família libanesa e também sempre teve a casa cheia, mas ele tem mais técnica, ele parece um químico na cozinha. E essa união entre o mais bruto e o mais refinado deu certo.”
Em 2011 eles ainda não pensavam em tornar aquilo um negócio. Mas, aos poucos, as reuniões informais começaram a encher. Foi quando surgiu a chance de ocuparem um bar próximo à casa de Alexandre. Escolheram um dia menos movimentado no local e combinaram com o dono uma receita simples: usariam a cozinha, levariam um DJ, e dividiriam com o proprietário o lucro do bar. Foi um sucesso. Compareceram 200 pessoas ao jantar, que teve hambúrguer no cardápio (na época, bem lembra Alexandre, ainda não havia tantas hamburguerias na cidade). No final da noite, em vez de um chapéu, eles passaram uma panela para arrecadar dinheiro entre os convidados. O formato acabou se consagrando e tornou-se a Soul Burger, uma das festas periódicas que estão até hoje a agenda do Soul Kitchen. Ainda nessa época, um terceiro amigo entrou no projeto, Rodrigo Marcondes, 40.
As festas começaram a ficar conhecidas e a sair na mídia, até que chamaram atenção de uma grande empresa, que quis patrocinar os eventos. “Um executivo da marca me escreveu, marcamos uma reunião e eu disse ‘Mas você quer patrocinar uma festa no boteco? Ainda nem temos empresa. Vamos ficar, namorar, depois a gente vê se dá certo. Ainda não sei o que vai virar’”, conta Alexandre. Ele afirma que a experiência anterior em agências de publicidade e o trabalho em uma startup foram fundamentais para ele entender os limites do negócio que estava surgindo. Na época, tocava com amigos a It’s Noon, um marketplace de compra e venda de projetos e ideias criativas, que conecta uma rede de criadores.
E O MEDO DE TRANSFORMAR UMA PAIXÃO EM TRABALHO?
A ideia de tornar o Soul Kitchen, efetivamente, uma empresa veio somente em 2013, depois de uma viagem de Alexandre para a Índia e o Butão. Na volta, ele passou a questionar seus valores, a pensar em qual seria o seu legado. “Eu tinha um medo enorme, pois na minha cabeça trabalho era uma coisa que me incomodava e eu resistia a pegar algo que amo e colocar na caixinha trabalho. Mas fazer isso foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Hoje, não tem mais aquela coisa de ‘chega logo, sexta-feira’”, conta.
Para tocar o negócio, Alexandre chamou os amigos que tinham começado o projeto com ele. Cada um tinha sua empresa – Geraldo é dono da Semina, fábrica de camisinha e gel lubrificante, e Rodrigo, da Bendita Macchina, oficina especializada em motos customizadas –, mas ambos aceitaram a proposta e passaram a tocar o Soul Kitchen em paralelo.
A primeira decisão do trio de recém-sócios foi aparentemente controversa: não fazer um plano de negócio. Em vez disso, fariam uma lista do que “não fazer” na nova empresa. Entre elas, não se endividar: a conta do Soul Kitchen fecharia com a venda de comida e bebida. Também não depender de patrocínio: ele seria destinado à melhoria da experiência do público (o próprio Lab, aliás, é resultado de um valor arrecadado por esta via). Depois de um período de “vai não vai”, no fim de 2014 o negócio estava finalmente estruturado. A Ambev foi a primeira marca a fechar como parceira do Soul Kitchen. Hoje, eles também têm contratos com Electrolux, Colorado e Mekal. Alexandre conta:
“Ter trabalhado numa startup me ensinou a ‘sevirologia’, ou seja, a fazer o melhor que se pode com o melhor que se tem, otimizando a capacidade instalada”
Um exemplo disso aconteceu quando o Soul Kitchen encarou fazer um evento bem maior que as festinhas no boteco. O jantar aconteceu, em 2015, na Praça das Artes, em São Paulo, para mais de 1 000 pessoas (imagine servir 500 quilos de comida) em um local que não tinha cozinha nem lugar para lavar a mão. A solução, ali, foi levar toda a estrutura e terceirizar a operação.
Essa tática levou Alexandre a desenvolver, com o tempo, de uma cozinha móvel, que “monta e desmonta como um Lego” e pode ser transportada para os mais diferentes locais. Essa mobilidade é outra característica que, segundo ele, ajudou a moldar a empresa. “Demorou mais de um ano para o projeto decolar. Se eu tivesse montado um escritório, teria investido dinheiro e ficaria aquela ansiedade para dar certo logo”, afirma.
Também em 2015 foi possível montar o primeiro calendário de eventos, determinando também uma meta de lucro para cada um. Com a consolidação do negócio, a panela de doações ficou para trás: o Soul Kitchen ganha dinheiro criando experiências “open food” (ou seja, nas quais come-se à vontade) cobrando ingressos que custam de 60 a 120 reais por pessoa, dependendo do cardápio. A bebida é paga à parte. Cada evento tem um formato, um cardápio e propõe uma experiência diferente. Mesmo que os sócios ainda participem da escolha do cardápio, muitas vezes a comida é feita por chefs convidados. Neste formato, o Soul Kitchen já fez eventos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
SEM PRESSA, MAS SABENDO AONDE QUER CHEGAR
Os três sócios continuam juntos no negócio, mas criaram uma estrutura na qual há uma empresa dona da marca Soul Kitchen e uma outra para os eventos (nesta, Alexandre dedica-se 100% à operação e é o sócio majoritário). Ele descreve o modelo e seus desdobramentos: “É semelhante ao de um escritório de advocacia: conforme o giro, remuneramos quem trabalha em cada evento. Agora, estamos bolando um modelo de licenciamento da marca, como spinoffs: produção de conteúdo, catering, eventos e viagens. Cada área tem um gestor, que trabalha dentro do Soul Kitchen”.
Neste desenho, a área de catering está a cargo de Gustavo Blanco – que, no dia da entrevista ao Draft, comandava as panelas para um evento que aconteceria naquele dia mais tarde no Lab. “Mesmo no catering, nossa cozinha é ao vivo. Fazemos um pré-preparo e finalizamos o prato quando os convidados chegam. Digo que a gente não faz ‘finger food’, mas ‘cuia food’, um rango mais descontraído”, diz Alexandre. O valor do serviço de catering varia de 180 a 300 reais por pessoa.
Para viabilizar as festas fora do Lab – os chamados “eventos proprietários”, como a Soul Burger (aquela, do início da história) e a Cook’n’Groove –, Alexandre afirma buscar parcerias com produtores, que ficam responsáveis pela segurança e pela estrutura. “Não somos uma empresa de eventos, e sim, uma incubadora de projetos”, diz ele. Um exemplo de como acontece essa parceria: há três anos o Soul Kitchen leva 500 pessoas para o réveillon em Alter do Chão, no Pará, mas quem vende e organiza o pacote é uma agência de viagens. Em julho deste ano, a ideia é oferecer uma viagem para a Bahia, nos mesmos moldes de Alter do Chão.
Já a produção de conteúdo começou no ano passado e tem como objetivo expandir o alcance do Soul Kitchen. Alexandre fala que o objetivo maior da empresa é melhorar a relação entre as pessoas através do alimento e do ato de comer. Investir em conteúdo, diz, é um jeito de fazer a experiência chegar a mais pessoas:
“Sei que fazendo eventos em locais como Vila Madalena, Itaim e Leblon, não vou mudar a vida de ninguém. Quero que o menino que está no Cariri pegue uma receita no site e também faça um Soul Burger”
Para tanto, as redes sociais e o site do Soul Kitchen publicam desde textos genéricos para quem gosta de gastronomia, até de fato receitas e vídeos que registram as festas do projeto ou mostram o processo criativo de artistas com os quais eles trabalham. Para selecionar o responsável pela área de produção de conteúdo, eles bolaram um concurso de culinária, pois buscavam alguém igualmente apaixonado por comida. O vencedor, conta Alexandre, foi João Queiroz, que preparou um ceviche de caju.
Alexandre continua gostando tanto das segundas-feiras como das sextas-feiras. Ele afirma que o modelo de negócio tem funcionado e que, até hoje, apenas um evento do Soul Kitchen deu prejuízo. Realizado no Rio de Janeiro, era, novamente, algo de grandes proporções. “Não é fácil servir comida para 1 500 pessoas. Hoje, preferimos trabalhar com um público em torno de 50 pessoas, para conseguir oferecer uma experiência melhor”, diz. Fica o aprendizado. E fica, também, a inquietação de sempre buscar novidades. Na mira, agora, está um projeto de cozinha com receitas das avós. “Nosso propósito é alimentar a alma das pessoas através da comida. É ter essa sensação da casa da vó, é resgatar o papo perto do fogão. Era o que fazíamos no início. Queremos repetir e manter isso”, diz.
Cozinhar demanda foco e, quando em grupo, um trabalho afinado em equipe. A ex-MasterChef Izabela Dolabela, o marido e duas sócias estão à frente do it.kitchen, que adapta a dinâmica e as lições da cozinha para a vida corporativa.
Ao recomeçar a vida no sítio de sua infância, Rodrigo Veraldi Ismael decidiu plantar frutas vermelhas. Hoje cultiva ainda outros ingredientes e absorve a produção no Entre Vilas, restaurante com menu sazonal e vinícola.
Rachel Bonino, especialista em ingredientes brasileiros, oferece um serviço de curadoria de produtos regionais, enviados para a casa dos clientes com informações saborosas sobre como tirar o melhor de cada alimento.