Essa história começou junto com a minha primeira menstruação, em 2004, quando eu tinha 11 anos de idade.
Em meio a toda animação e expectativa daquele novo momento, começaram as cólicas. Ainda me lembro da primeira cólica menstrual que tive.
A sensação horrível, a indisposição que vinha junto. De acordo com a minha ginecologista, não tinha muito o que fazer. Algumas mulheres tinham, outras não. “Toma analgésico”.
E assim fiz durante 18 anos da minha vida. Mesmo quando as cólicas começaram a aumentar de intensidade. Quando as dores eram tão fortes que eu vomitava o que tivesse no estômago no momento.
Perdi dias de aula, de trabalho, festas de casamento, de aniversário, reuniões de família. E o pior de tudo é que esse ciclo se repetia a cada 21 dias
As respostas dos muitos médicos pelos quais passei durante esse período foram as mesmas, “analgésico e compressa quente, não tem muito que fazer”, “ciclo de 21 dias é normal, algumas mulheres têm também”.
Eu aceitava, mas não concordava.
Foi quando comecei a pesquisar sobre a endometriose, distúrbio no qual o endométrio — tecido que reveste o útero para receber o feto –, ao invés de ser expulso no sangue da menstruação, acaba viajando pelo organismo e “grudando” em outros órgãos como vagina, ovários, intestino, bexiga etc.
Eu tinha grande parte dos sintomas: cólica menstrual incapacitante, dor pélvica crônica e dor para evacuar.
Consegui um pedido de ressonância magnética da pelve após insistir com o ginecologista com quem passava na época. O resultado era claro: “fortes indícios de endometriose”
Porém, eu estava prestes a ir estudar fora do país. O médico decidiu me receitar anticoncepcionais para suspender meu ciclo menstrual (a endometriose piora a cada ciclo, pois mais endométrio é produzido e expulso pelo corpo, o que pode fazê-lo “grudar” em novos locais) e, assim, começar a tratar a doença.
Não funcionou, pois as pílulas começaram a causar sintomas depressivos. Decidi suspender o uso — e passei a sofrer com as piores crises de cólicas da minha vida.
Ao retornar ao Brasil, após um ano e meio, me consultei com um especialista em endometriose.
Os dois fatos que sempre eram normalizados foram, justamente, os que mais chamaram a atenção do médico: um ciclo menstrual de 21 dias e as fortes dores.
Dois exames foram pedidos: o anti-mulleriano (que analisa a reserva ovariana) e uma nova ressonância da pelve. Os resultados foram taxativos: endometriose.
Para além disso, foi identificado que eu tinha poucos folículos nos ovários e, consequentemente, produzia pouquíssimos óvulos para uma mulher de 29 anos
De acordo com o especialista, o ciclo de 21 dias era um indicativo de mau funcionamento dos ovários. Essa condição é rara, ainda não sabemos a causa, mas a endometriose, com toda certeza, não ajudou.
O médico foi bem direto: ou eu congelava óvulos naquele momento, ou uma gravidez seria muito difícil, até mesmo impossível.
A notícia foi um baque. A sensação de perda e vazio durou um bom tempo. Ao lado de perguntas como “por que comigo?”, “sempre fui ao médico, como isso nunca apareceu?” etc.
Além da tristeza, ainda tinha o peso de ter que tomar uma decisão em breve.
O congelamento ainda é um processo bastante caro e difícil. “Eu quero mesmo gestar tanto assim?” Até aquele momento, eu nunca tinha me feito essa pergunta e a resposta veio cheia de incerteza. Sentia que não estava pronta para desistir definitivamente da possibilidade
E assim foi. Encontrei uma clínica de fertilidade que me deixou bastante tranquila.
A médica que me recebeu me acolheu de uma maneira que eu realmente precisava naquele momento, sendo extremamente atenciosa e cuidadosa.
Ela me explicou o processo nos mínimos detalhes. O mais indicado para mim, por conta do caso, seria realizar duas estimulações ovarianas.
O congelamento de óvulos é a última etapa do processo, que conta com estimulação ovariana (dura em média 20 dias), coleta dos óvulos (cerca de uma hora com a paciente sob sedação), análise dos óvulos (feita em laboratório após a coleta para verificar os que estão aptos para serem congelados) e, finalmente, o congelamento.
Começamos a primeira rodada de estimulação em agosto de 2021. O processo é muito difícil. Passei a tomar remédios diários, assim como injeções por cerca de 15 dias.
Nesse período, eu tinha que realizar ultrassons transvaginais dia sim, dia não, para acompanhar a evolução dos folículos que estavam sendo estimulados para gerarem óvulos.
Comecei com oito folículos. Mulheres “normais” geralmente têm mais de 20 por ciclo menstrual. A cada exame, eu descobria que mais um dos folículos tinha parado de se desenvolver.
Ou seja, meus ovários não estavam respondendo bem ao processo de estimulação, o que foi mais uma frustração para processar.
Além disso, o efeito dos muitos hormônios que estavam sendo injetados no meu corpo era brutal. Estresse, explosões emocionais, inchaço, cansaço constante. Eu não tinha vontade de fazer nada, só de ficar deitada, chorando
Para o mundo lá fora, eu colocava a máscara da normalidade. Trabalhava, saía com amigos, mesmo me sentindo sem forças.
Era uma mistura de impotência e tristeza que eu não consigo explicar. Apenas minha família e pessoas próximas sabiam pelo que eu estava passando. Mesmo assim, me sentia extremamente sozinha.
Finalmente, no começo de setembro, chegou o dia da primeira coleta. Fui colocada sob sedação e o processo ocorreu.
Horas depois recebi a informação de que tinha conseguido produzir quatro óvulos maduros o suficiente para serem congelados.
Porém, o número ideal para uma baixa produtora como eu tentar uma fertilização no futuro é de, pelo menos, dez. Ou seja, eu estava bem longe disso, sem nenhuma reserva financeira e exausta
Avisei minha médica que não pretendia fazer a segunda rodada imediatamente. Primeiro, por motivos financeiros e, segundo, emocionais.
Eu estava destroçada, não tinha a menor condição de colocar mais nenhum hormônio dentro do meu corpo. Ela concordou.
Ganhei da clínica uma pulseira com a palavra “esperança” gravada em um pingente que perdi dois dias após o procedimento.
Pode parecer bobagem, mas, para mim, aquele era um sinal de que o universo não estava do meu lado naquela questão.
Depois de tudo isso, eu simplesmente fingi que aquele assunto não existia. Consegui um novo emprego e mergulhei de cabeça no trabalho.
Me obrigava a não pensar naquilo. Porém, minha antiga companheira de todo mês, a cólica, não me deixava esquecer que meu sistema reprodutor não estava bem.
Um ano e meio depois, uma nova crise tenebrosa de cólica me fez acordar da negação. Dessa vez, fui parar no hospital para tomar analgésicos intravenosos
Eu sabia que precisava fazer mais uma coleta e que precisava voltar urgentemente a tratar a endometriose.
Tinha tentado com pílulas anticoncepcionais novamente após a coleta, mas os sintomas depressivos, mais uma vez, tinham me feito desistir dessa opção.
Porém, dessa vez, eu decidi ir com uma postura diferente. Ao invés de me colocar com uma vítima, eu iria me tornar uma protagonista.
Voltei ao consultório em dezembro de 2022. A situação estava praticamente a mesma, eu tinha apenas cinco folículos naquele momento.
Porém, a médica também não queria fazer as coisas da mesma maneira. Combinamos que eu monitoraria o número de folículos mensalmente — isso significava que toda vez que eu menstruasse, tinha que avisar a clínica, coletar exames de sangue e hormonais e correr para lá para fazer um ultrassom. Quando eu estivesse com um bom número, iríamos começar a estimulação.
Paralelamente, passei a tomar diariamente um suplemento alimentar chamado DHEA, que tinha um histórico de resultados positivos em pacientes com um baixo número de folículos.
Fora isso, procurei uma nutricionista especializada em saúde da mulher. Eu sabia que aquilo não mudaria minha situação completamente, mas também não iria atrapalhar.
Mudei minha dieta completamente e passei a me exercitar todos os dias. O foco era uma alimentação o mais saudável possível
Também comecei a suplementar diversas vitaminas, além de mudar meus hábitos. Passei a dormir mais cedo e acordar mais cedo. Tomar mais água. Tudo para sentir que eu não estava passiva naquele processo, como na primeira vez.
Porém, os baques continuavam. Foram três meses seguidos com menos de quatro folículos para serem estimulados. Lembro que em fevereiro de 2023 cheguei ao número mais baixo de todo o processo, dois folículos apenas.
Encarei a tela do computador com os resultados sem saber o que pensar. A médica, percebendo meu estado, fez uma sugestão que acabaria por mudar o jogo.
Eu deveria voltar dali duas semanas, antes de ter uma nova menstruação. Segundo ela, algumas pacientes baixas produtoras acabavam tendo mais folículos após a menstruação
Duas semanas depois, a notícia: Eu tinha sete folículos. Decidimos iniciar a estimulação naquele mesmo dia. E, de novo, injeções, remédios, hormônios, cansaço.
Após uma semana, percebemos que, novamente, meus ovários estavam respondendo muito lentamente. Diante disso, a médica aumentou a dose de hormônios diária.
Continuei o processo otimista, mas conformada de que não seria nada muito melhor do que da última vez. Seguia me exercitando, comendo de forma saudável e tentando não deixar aquilo tomar a minha vida completamente.
Finalmente, após 20 dias, eu estava pronta para a coleta. De acordo com a médica, cinco folículos pareciam estar maduros. Me animei, pois já era um a mais do que da primeira vez. Pode parecer pouco, mas aprendemos que com questões de fertilidade, cada pequena vitória importa
Também decidimos que após a coleta, ainda sob sedação, eu iria ter o DIU Kyleena implantado. Ele seria o responsável por interromper minha menstruação e me ajudar no tratamento da endometriose.
E lá fomos nós. No fim de março de 2023, passei novamente pelo processo de coleta de óvulos. Ironicamente, ou não, no Mês Internacional da Conscientização da Endometriose.
Surpreendentemente, consegui congelar sete óvulos.
Minha médica me contou, com um grande sorriso, que dois óvulos que pareciam muito pequenos no ultrassom na verdade estavam bons e puderam finalizar sua maturação em laboratório
Com isso, encerramos a fase de coleta e deixei o consultório com a sensação de que uma tonelada tinha saído dos meus ombros.
Hoje, comemoro um ano de vida livre das cólicas — e, também, livre da incerteza, do medo e da sensação de impotência.
Após muita terapia e autorreflexão, posso dizer que aprendi muito mais sobre o que significa ser mulher para mim.
Ainda me lembro que uma das primeiras coisas ao pensar quando descobri que teria dificuldades para engravidar foi “Quem vai me querer assim?”, algo que me assustou e revelou o quanto mulheres são condicionadas a ligar o ato de gestar a sua “feminilidade”, o que não faz sentido algum
Ser mulher vai além de ter ou não filho, ter ou não um parceiro. É sobre viver uma vida plena, com saúde e qualidade, algo que por muito tempo me faltou e comprometeu muitas das minhas experiências.
Aprendi também que a saúde da mulher é extremamente ignorada e vista como “bobagem” por muitos na comunidade científica e médica.
Segundo dados, apesar de afetar de 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva (entre 15 e 49 anos), a endometriose demora, em média, sete anos para ser diagnosticada, desde o surgimento dos primeiros sinais e sintomas. A causa da endometriose também ainda não é clara para os médicos.
Tive o privilégio de conseguir ter acesso a bons profissionais e tecnologias, mas sei que não é assim para todo mundo no Brasil. E, mesmo assim, levei 19 anos para ter um diagnóstico fechado.
Ou seja, é preocupante que algo assim aconteça ainda em pleno 2024 e mostra que precisamos, urgentemente, de mais médicas e cientistas mulheres, pessoas que possam representar nossos interesses dentro destas comunidades com seriedade, além de mais investimento em pesquisas e estudos sobre a doença
Em março de 2024, fiz uma viagem solo para comemorar o fim desse momento na minha vida.
Sigo acompanhando a endometriose e não tive nenhuma piora no quadro no último ano. Continuo comendo bem e me exercitando, pois percebi que isso fazia muita diferença para minha saúde no geral.
Atualmente, tento viver cada dia intensamente, celebrando a qualidade de vida que me foi devolvida após quase 20 anos.
E se você está passando por isso, saiba que a endometriose e a infertilidade não te definem. Somos muito mais.
Raquel Novaes Bertani, 31, é jornalista especialista em redes sociais e comunicação corporativa. Formada pela Faculdade Cásper Líbero, é mestre em Jornalismo e Cultura Política pela University of East Anglia. Atualmente, assessora executivos C-Level a se posicionarem nas redes sociais.
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