Bruna Freitas, 30, convive com o Rio Amazonas desde que nasceu. Ela mora em Santana, cidade a 20 quilômetros de Macapá, a capital do Amapá.
Inspirada na grandeza do rio e na riqueza que ele pode gerar para a região, Bruna e seu sócio, Frank Portela, fundaram juntos a Yara, uma marca de couro fabricado com a pele de peixes amazônicos, como pirarucu, corvina e pescada-amarela.
Com 73% do seu território preservado e protegido por unidades de conservação e terras indígenas, o Amapá tem na pesca um dos motores da sua economia, mas precisa lidar também com os efeitos negativos da atividade. Segundo Bruna, 60% do peixe é resíduo, o que gera sérios problemas ambientais em algumas regiões.
Ajudar a resolver esse problema – transformando a pele de peixe descartada em couro sustentável para a indústria da moda – é uma das missões da Yara. Bruna afirma:
“Nós não inventamos o couro de peixe. O que fizemos foi criar um processo produtivo de elevação da cadeia do pescado e aproveitamento desse resíduo de forma a transformá-lo em um produto final que seja atrativo”
A Yara nasceu com um investimento inicial de 10 mil reais. Bruna e Frank hoje têm mais duas sócias, Stéfane Correa e Camila Nascimento. O quarteto ainda está estruturando a operação: os primeiros produtos (o próprio couro; a bolsa da foto acima é um protótipo) foram feitos de forma artesanal, em parceria com escolas e indústrias da região.
Até o fim deste ano, porém, a Yara já quer estar em fase de escala. E para isso, acaba de receber um impulso: um aporte de 2 milhões de reais por meio do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) coordenado pela Superintendência da Zona Franca de Manaus e executado pelo Instituto de Desenvolvimento da Amazônia (Idesam).
A seguir, a empreendedora amapaense fala ao Draft sobre a construção do seu negócio, o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia e os planos para o futuro:
Como surgiu a ideia da Yara?
Sou da Amazônia e sempre fui uma pessoa inconformada. Tive que sair para estudar em Belém porque aqui [no Amapá] não tinha curso de publicidade.
Depois, fui morar um tempo em Portugal em busca de oportunidade. Lá, eu trabalhei fazendo comunicação em indústrias têxteis e foi meu primeiro grande contato na moda.
Nesse tempo fora, sempre pensei: por que a gente precisa ir tão longe para realmente fazer acontecer? E aí resolvi voltar para o Amapá e fazer algo que tivesse a ver com a minha identidade – com todo esse inconformismo –, e colocar um pouco daquilo que eu aprendi fora
A ideia da Yara vem um pouco de tudo isso e traz a minha preocupação ambiental e com a valorização da Amazônia.
E por que trabalhar com o couro de peixe feito a partir da pele que é descartada?
O projeto da Yara tem uma pegada de ESG muito forte. Aqui, com frequência, os resíduos da atividade pesqueira simplesmente são enterrados ou jogados nos rios. Mais ao norte, no [rio] Oiapoque, tem municípios onde isso virou um problema de saúde.
O que acontece hoje é que não há uma política pré-definida para esse descarte de resíduo. Não há algo que regule isso de forma correta e coerente. Por ser um volume muito grande e concentrado, embora seja matéria orgânica acaba gerando odor… imagine toneladas concentrada em uma região?
Isso atrai rato, mosca, barata e causa um problema de saúde pública. E um problema ambiental, porque para essa matéria orgânica se deteriorar de forma adequada ela precisaria também ser rejeitada de uma forma adequada para atender alguns padrões sanitários.
E nós [da Yara] sabemos como lidar com o couro, entendemos que esse é um grande problema, que há uma urgência de trabalhar os recursos naturais da Amazônia, gerar riqueza e deixar riqueza aqui. E aí a Yara misturou tudo isso.
Quem são os fornecedores da pele de peixe? E como são estabelecidas essas parcerias?
Criamos parcerias estratégicas com frigoríficos que fornecem nosso maior volume de pele. Também temos parcerias com aldeias indígenas e comunidades de pescadores. Tanto que o nosso impacto social está muito concentrado aí.
As primeiras parcerias foram feitas através de pesquisa ou indicação de terceiros. No caso das aldeias indígenas, há parceiros como o SENAI, que tem nos aproximado das aldeias. Em relação às comunidades, tem uma parceria com o Sicoob [Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil].
Buscamos entender como funciona cada parceiro, quais parcerias eles já têm, pra quem comercializam e a viabilidade, se conseguem adequar à rotina às necessidades da Yara.
Agora, estamos ampliando este trabalho e as cooperativas que estiverem associadas vão colocar biodigestores dentro das comunidades. Ou seja, vão vender a pele para a Yara e o restante podem jogar no biodigestor que vai gerar biogás e biofertilizante
A nossa roda de impacto fecha bem porque, de fato, estamos costurando todos os segmentos e vertentes de forma bem coerente.
Como é esse processo de transformar a pele em couro?
Estamos afinando uma tecnologia que chamamos de green leather [“couro verde”].
Quando a pele do peixe é retirada, precisa congelar para guardar ou curtir diretamente. Na indústria tradicional, esse curtimento é feito com cromo, que é poluente e danoso para a saúde. Na Yara, curtimos com taninos vegetais, que não poluem.
Nesse primeiro processo, o couro sai como um papelão e depois parte para o acabamento. É quando a gente consegue deixar uma textura mais maleável.
Estamos testando uma tecnologia usando óleos da Amazônia para tratar esse couro e deixá-lo menos rígido, e trabalhando toda a nossa tecnologia para usar ingredientes naturais, como pigmentos feitos a partir de açaí e urucum
Tudo isso está sendo trabalhado para usar o que tem em volta. A Yara não é só uma indústria de reaproveitamento, é de reinvenção. Estamos reinventando uma forma de fazer couro com ingredientes diferentes, inovadores, que tenham a identidade da Amazônia.
Como você avalia hoje o desenvolvimento da bioeconomia no Amapá?
É preciso reinventar a forma como vamos desenvolver a região. Não se pode simplesmente dizer que o Amapá vai ficar intocado. Tem outras formas criativas e inovadoras de desenvolver essa região sem precisar derrubar árvores, poluir rio, danificar as águas.
Orientado a isso, temos o Tucuju Valley, que é a nossa comunidade de startups. Ali a gente vê que realmente existe um novo pensamento voltado para desenvolver a região de forma criativa e sem agredi-la
Hoje, para desenvolver a Amazônia precisa ter um feeling de oportunidade, porque quem enxerga que não pode tocar no Amapá – porque é super preservado – cria um problema para empreender.
A gente entendeu isso. Eu não vou pescar peixe para fazer couro. Vou pegar peixe que está sendo mal aproveitado e vou transformar isso em oportunidade. É mais esse viés do empreendedorismo inovador e com um olhar atento.
Que diferença faz ter empreendedores locais pensando no desenvolvimento da Amazônia, em vez de pessoas de outros estados e regiões?
Não tenho nenhuma crítica a quem queira auxiliar, até porque toda ajuda para desenvolver a Amazônia é válida. Mas eu me pergunto por que a gente, com tanto talento aqui, não consegue? Por que a gente só exporta pessoas e não retém?
A Yara é uma indústria que vai ser liderada por mulheres da Amazônia para que outras pessoas não precisem sair daqui, não precisem abrir mão de viver na Amazônia
Nosso sonho é criar um ambiente de desenvolvimento local que retenha talentos e incentive a cadeia do pescado.
Qual a importância, para o futuro do negócio, do recurso de 2 milhões de reais que a Yara recebeu recentemente?
É o que vai dar o gás para chegarmos no mercado como uma empresa amazônida que tem um produto consolidado. Já podíamos estar comercializando em pequena escala, porém correndo alguns riscos desnecessários.
Esse é um produto que já existe, então a gente está se armando de diferenciais. Por ser algo que vem da Amazônia, a gente vai vender além do produto, vai vender posicionamento e valor. E isso precisa ser bem coerente, bem trabalhado.
Marina Sierra Camargo levava baldes no porta-malas para coletar e compostar em casa o lixo dos colegas. Hoje, ela e Adriano Sgarbi tocam a Planta Feliz, que produz adubo a partir dos resíduos gerados por famílias e empresas.
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