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Natura quebra paradigma mundial e mostra como produzir palma de modo sustentável

Bruno Leuzinger / 10 jun 2017
Sistema agroflorestal: promessa de revolução no cultivo do dendê para produção de óleo de palma (foto: Débora Castellani)
Bruno Leuzinger - 10 jun 2017
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Tomé-Açu é um município no nordeste do Pará, às margens do Rio Acará-Mirim, 260 km ao sul de Belém. Uma de suas peculiaridades é a forte presença nipônica, por conta da vinda de imigrantes japoneses que a partir dos anos 1930 se estabeleceram em colônias agrícolas na região. Essa influência é visível por toda parte, de anúncios de supermercado no idioma japonês aos torneios de beisebol, passando pela comida e por lugares como a Associação Cultural de Tomé-Açu, um cantinho do Japão na parte mais desenvolvida e populosa da cidade, o distrito de Quatro Bocas. Nos últimos anos, esse desenvolvimento foi alavancado em parte pelo Programa Nacional de Óleo de Palma, que desde 2010 estimula a produção de dendê (para extração e refino do óleo) baseada na agricultura familiar.

O óleo de palma é o óleo vegetal mais consumido do planeta, a versão refinada do azeite de dendê que tempera as moquecas baianas. Serve de matéria-prima para uma série de produtos, de cosméticos a gêneros alimentícios. Os maiores produtores do mundo são Malásia, Indonésia e Tailândia. “Na Malásia, sobrevoando o país você só vê palma”, diz Débora Castellani, gerente científico em tecnologias sustentáveis da Natura. A voracidade na ocupação do meio ambiente para a produção no Sudeste Asiático está associada a desmatamentos de florestas tropicais, perda de biodiversidade e emissão de gases do efeito estufa.

Bióloga e fitotecnista, Débora trabalha na Natura desde 2004. A sede da empresa fica em Cajamar (SP), mas a gerente passa boa parte do tempo em pesquisa de campo, liderando o SAF Dendê, projeto que ela ajudou a implementar, há mais de dez anos, em Tomé-Açu. “Em 2005, atenta à forma de produção do óleo de palma que vinha da Malásia, a Natura começou uma discussão interna sobre um modo de produção mais sustentável, que incluísse mais agricultores familiares e gerasse mais benefícios sócio-ambientais”, diz Débora. “Trouxemos então a proposta de produzir a palma junto com outras espécies fruteiras, com madeira e adubadeiras, plantas que colocarmos no sistema para fornecer matéria orgânica.”

No SAF Dendê, a Natura planta com a ajuda da floresta, e não lutando contra ela

Para desbravar uma alternativa à monocultura utilizada em larga escala na produção de palmeiras para o óleo de palma no mundo todo (inclusive no Brasil), Débora e a Natura resolveram desenvolver uma pesquisa para estudar a viabilidade da implementação de um Sistema Agroflorestal (SAF) para produzir palma. Basicamente, o SAF é um meio-termo entre o campo e a floresta, um modo de produção que incentiva o equilíbrio da agricultura com a natureza, privilegiando a manutenção de árvores e da biodiversidade em geral, e dispensando o uso de fertilizantes.

“Por se aproximarem de uma estrutura florestal, os SAFs geram os mesmos serviços ecossistêmicos de uma floresta”, diz Débora. “São refúgio para animais, atraem polinizadores, conservam o solo e a água, promovem a presença de microrganismos, a produção de matéria prima…”

Entre as vantagens do Sistema Agroflorestal está uma resiliência naturalmente maior diante de doenças como o amarelecimento fatal, um problema fitossanitário que já causou perdas de milhares de hectares de monocultura de palma no Pará. “Na monocultura, qualquer episódio de praga ou doença gera um cenário muito favorável a se alastrar rapidamente. É como se você entrasse gripado numa sala com várias pessoas”, diz Débora.

Outro benefício é a maior amplitude das fontes de renda do agricultor. “Se você só planta palma, só vende palma. Se planta palma, açaí, cacau e mandioca, vende palma, açaí, cacau e mandioca. Isso melhora o uso da mão de obra, que é mais distribuída ao longo do ano pelas outras culturas.”

Apesar dos aspectos positivos, a ideia de plantar dendê em um Sistema Agroflorestal era (e é) extremamente ousada. Não havia nenhuma referência de cultivo organizado de palma com outras espécies. Em vez disso, havia uma crença arraigada de que a planta só poderia prosperar por meio da monocultura. “Todo mundo dizia: dendê não gosta que plante nada perto dele. E realmente existem plantas que têm o que a gente chama de alelopatia: elas soltam uma substância pela raiz ou na decomposição das folhas que inibe o crescimento das outras espécies para que possam predominar no espaço”, afirma Débora. Seria esse o caso do dendê?

Laboratório a céu aberto, agricultura em andares e proteção do solo: os segredos do SAF Dendê

A Natura aprovou o início do projeto de pesquisa em 2006 e estabeleceu a missão de criar Unidades Demonstrativas, laboratórios de teste a céu aberto que servissem como “vitrine tecnológica” para exibir e futuramente expandir as técnicas de Sistema Agroflorestal para cultivo de dendê. Para desenvolver essas unidades, a empresa convidou a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (CAMTA), no distrito de Quatro Bocas. “A ideia era envolver agricultores que já fizessem parte da nossa base de fornecedores”, diz Débora. “A CAMTA é referência no mundo em sistemas agroflorestais, e já nos fornecia maracujá, cupuaçu e cacau. Além disso, Tomé-Açu era também uma região interessante para produzir palma.”

O Sistema Agroflorestal, aliás, é uma opção particularmente vantajosa para zonas tropicais, como a Amazônia, onde se encontra Tomé-Açu. “Em regiões tropicais, a temperatura e a radiação são muito elevadas. Quando você deixa o solo exposto, causa um dano à planta e ao solo, porque os microorganismos do solo também não resistem à alta temperatura”, diz Débora. Outra questão é a incidência maior de chuvas pesadas nessas regiões. “Se o solo não está coberto, ele é lavado pela chuva. E a camada mais fértil está a 10 centímetros da superfície.” Na monocultura, o solo está sempre descoberto, e com frequência é revolvido para o plantio de forma que pode comprometer sua fertilidade natural.

Na agricultura em andares do SAF, porém, a folhagem das demais árvores, posicionadas em alturas e intervalos distintos, funciona como uma espécie de guarda-chuva. “De modo simplificado, na monocultura você tem um dendê, um dendê, um dendê… No nosso caso, eu tenho um dendê e embaixo um cacau, e embaixo do cacau, eu coloco um açaí… Vou ocupando o terreno de uma maneira que propicia melhor aproveitamento de luz e espaço”, diz Débora.

“O SAF é dinâmico. No começo, você coloca plantas que gostam mais de luz. Quando elas vão crescendo, diminui a luminosidade, aí sai a planta que gosta mais de luz e entra a planta que gosta mais de sombra… Você vai manejando o sistema”, completa.

Entre 2006 e 2007, Débora teve reuniões com stakeholders do segmento de palma para apresentar o projeto, à cata de parceiros. Conversou com bancos, empresas, cooperativas e pesquisadores, e ouviu de muita gente a velha máxima de que o dendê não cresce com outras plantas. Havia também uma preocupação de que as palmeiras ficassem à sombra de outras árvores. “A primeira coisa que eu dizia era: vamos obedecer todas as exigências ecológicas do dendê. O dendê é uma planta que gosta de sol, jamais vou colocá-lo embaixo de uma árvore, é uma premissa básica.”

Rompendo com a ideia de que o dendê não se dá bem com outras plantas e precisa ser plantado sozinho…

A Embrapa encampou a ideia e se tornou uma das três parceiras principais do projeto. As outras são a Finep, empresa pública de fomento à ciência, e a CAMTA. Formada por descendentes de imigrantes japoneses, a cooperativa de Tomé-Açu mantém fortes laços com o país asiático e costuma receber pesquisadores interessados em estudar seus métodos sustentáveis de produção agrícola. Na base de cooperados já havia quem plantasse dendê, mas apenas em monocultura (a adoção do Sistema Agroflorestal pela CAMTA valia só para outras espécies). “Sempre que um produtor está vinculado a uma empresa de palma, ele assina um contrato concordando em não plantar nada junto”, diz Débora.

Natura e CAMTA selecionaram três cooperados para participar do projeto. Cada agricultor disponibilizou seis hectares para implementar o SAF Dendê, totalizando 18 hectares. Esses terrenos serviriam como as Unidades Demonstrativas para os testes do sistema, e cada um deles tinha uma história de uso diferente — algo interessante do ponto de vista da pesquisa, pois permitia trabalhar e experimentar com três distintas condições iniciais de solo. Uma das áreas pertencia a um pomar abandonado, pronto para receber uma nova cultura; outra era uma capoeira (terreno com vegetação que surge após a retirada da mata) em estado de regeneração; e a terceira, uma pastagem degradada, onde o capim cobria o solo arenoso.

 

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Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu: referência mundial em sistemas agroflorestais

Dentro do projeto, ainda num esforço para avaliar diferenças de desempenho das plantas em condições distintas, Débora e a sua equipe de tecnologias sustentáveis resolveram estudar dois tipos de Sistemas Agroflorestais. “Um seria o SAF simplificado, mais na linha da monocultura, no sentido de que o dendê é a única espécie econômica, as demais entram apenas como adubadeiras, fornecendo matéria orgânica para o dendê. O outro, chamamos de SAF biodiverso. Nele, o dendê está consorciado com o cacau, açaí, mandioca, banana, maracujá, madeira [para corte]… Espécies que poderiam ser comercializadas ou fazer parte da alimentação dos agricultores.”

Ainda para efeito de comparação, cada Unidade Demonstrativa recebeu dois preparos de solo diferentes: um com machado e motosserra, como no método tradicional de “limpar” o terreno antes de tocar fogo para introduzir uma nova cultura (a queima, porém, não é benéfica e foi excluída da pesquisa), e o outro com uso do Tritucap, um implemento agrícola que já vinha sendo usado pela Embrapa e que serve para facilitar o manejo do agricultor, picando toda a matéria orgânica, que fica disponível para adubar as plantas. E assim, em 2008, os dois SAFs, simplificado e biodiverso, começaram a ser implantados.

Inovação como prática + sustentabilidade como compromisso = maior produtividade

Um hectare são 10 mil metros quadrados. Na produção brasileira por monocultura, cada hectare recebe em média 143 plantas de dendê. “Mas a nossa densidade varia de 81 a 99 plantas por hectare, porque queríamos entrar com muitas outras espécies”, diz Débora. Onze anos após o início do projeto, os resultados são mais do que empolgantes: são a prova de uma inovação concreta que no futuro pode revolucionar a produção dessa matéria-prima. “Comparando com a monocultura, nossos valores de produtividade de palma por planta são melhores. Seja com 81 ou 99 plantas, produzimos a mesma quantidade de quem plantou 143. Sem contar que produzimos também açaí, cacau, mandioca…”

As três Unidades Demonstrativas, com suas condições iniciais de solo (pomar, capoeira e pastagem), superaram suas estimativas de produtividade. “E o SAF biodiverso apresentou desenvolvimento melhor do que o simplificado”, diz Débora. Outro resultado extremamente positivo refere-se ao sequestro de carbono.

“Desde o início, queríamos armazenar carbono na biomassa aérea, ou seja, na vegetação, e também no solo. E hoje, temos resultados que mostram que sequestramos muito mais carbono do que o próprio sistema natural.” Em média, o SAF Dendê acumula 26% a mais de carbono do que a floresta secundária (que apresenta pouca interferência humana) e 31% a mais do que o cultivo tradicional de palma.

O sucesso do SAF Dendê tem atraído reconhecimento no Brasil e no exterior. A USAID, agência de fomento do governo americano, investiu 2,4 milhões de dólares no projeto e quer incentivar o intercâmbio científico para ampliar o entendimento do que significa inovação na cadeia produtiva da palma. Com sede no Quênia, o ICRAF, principal órgão de pesquisa agroflorestal do mundo, também enviará pesquisadores para estudar o sistema. Débora diz que as solicitações são tantas que a empresa tem até dificuldade para dar conta. “Há duas semanas, recebemos uma demanda da IUCN, a União para a Conservação da Natureza, que quer fazer um intercâmbio entre atores da Malásia e da Indonésia com a nossa pesquisa.”

 

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Dendê: matéria-prima do óleo vegetal mais consumido do planeta

Segundo a gerente, empresas brasileiras do setor que antes rejeitavam imediatamente qualquer hipótese do agricultor plantar palma em consórcio com outras espécies agora já repensaram seus posicionamentos e se engajaram: “nós apoiamos a diversificação”. Débora recorda que, dois anos atrás, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (hoje reduzido à Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário) reuniu 150 pequenos agricultores em Tomé-Açu para discutir o plantio de palma em agricultura familiar. “Sem que fizéssemos qualquer provocação, eles foram unânimes em dizer que querem produzir palma no sistema diversificado, no modelo que a Natura faz com a CAMTA.”

Foco no agricultor e planos ousados para o futuro

Cabe a eles, os agricultores, a maior parte das tomadas de decisões no escopo do SAF Dendê. “Fazemos tudo com a presença do agricultor”, diz Débora. “Muitas decisões são tomadas pelo ponto de vista dele, não da Natura. Estamos juntos, claro, levando informações e perspectivas que entendemos serem úteis, mas é o agricultor que decide pelo que acredita ser o melhor para si. Tem um, por exemplo, que foca 90% no dendê. Outro concentra-se também no cacau… Há um fator humano que seria muito interessante de se mensurar.”

No futuro, a Natura projeta expandir a área do SAF. A ideia está atrelada a um plano para inovar no processo de extração, que no mundo todo funciona centralizado em grandes unidades. Hoje, os produtores de Tomé-Açu entregam o dendê para ser processado em Tailândia, cidade a 145 km; a Natura paga pelo transporte e compensa as emissões de carbono. “Começamos a ver com a CAMTA que deveríamos descentralizar a extração, criando unidades menores que diminuíssem a distância entre os produtores.” Assim, cairiam os custos e a emissão de gases do efeito estufa. E a empresa poderia instalar uma usina de biogás para aproveitar a matéria orgânica que resta do processamento do óleo de palma.

Por ora, a monocultura ainda é essencial para suprir toda a demanda de óleo de palma da Natura (que recorre a produtores certificados pela Roundtable on Sustainable Palm Oil). A empresa, porém, já pode celebrar o sucesso de sua pesquisa e a conquista de um sistema de palma diversificado e de alto rendimento. “O maior de todos os resultados que esse projeto poderia trazer é mostrar que a palma cresce sim junto com outras plantas”, diz Débora. “Esse é um resultado hiper significativo: quebrar o paradigma de que a palma só poderia ser plantada em monocultura.”

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