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“Não é só trocar treinador. Tem que mudar o sistema, o calendário, a exportação do nosso futebol como produto”

Leonardo Neiva / 5 jan 2023
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil) https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brasil_estreia_contra_a_%C3%81frica_do_Sul_no_Man%C3%A9_Garrincha_%2828151407214%29.jpg
Leonardo Neiva - 5 jan 2023
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A final entre Argentina e França foi eletrizante e entrou instantaneamente no rol das maiores decisões de Copas do Mundo de todos os tempos. 

Naquele domingo, 18 de dezembro, milhões de pessoas ao redor do planeta grudaram os olhos na TV, assistindo à disputa entre dois grandes times, com Messi e Mbappé travando um confronto particular.

Aqui no Brasil, a decisão também empolgou, claro, mas é impossível não reconhecer que a Copa do Qatar deixou um gosto ruim na boca do torcedor. A seleção brasileira, ainda líder do ranking da FIFA e sempre apontada entre as favoritas ao título, amargou outra eliminação precoce nas quartas-de-final.

Além da derrota em campo, a Copa evidenciou outras deficiências do futebol brasileiro, da pouca identificação da torcida com os jogadores, quase todos em atividade na Europa, à falta de repertório tático.

Embora o peso da eliminação tenha recaído principalmente sobre os ombros do técnico Tite, a CBF – Confederação Brasileira de Futebol – é quem tem mais culpa no cartório. Ao menos essa é a visão de Amir Somoggi, sócio-diretor da Sports Value, agência brasileira de marketing esportivo.

“A verdade é que, todas as vezes em que o Brasil foi campeão, foi apesar da CBF”, diz Amir, que tem formação em administração e especialização em gerenciamento e marketing do esporte.

Para o executivo, que também já atuou como consultor de marketing e diretor de empresas como Crowe Horwath e BDO, falta um planejamento a longo prazo que coloque o futebol do país novamente no rumo das vitórias, a exemplo de seleções multicampeãs como Alemanha e França.

Em conversa com o Draft, Amir aborda a campanha do Brasil no Qatar, a falta de organização e união dos clubes brasileiros, a venda dos nossos melhores talentos para equipes europeias e a ascensão de times com as melhores gestões financeiras no cenário nacional. 

“Não é só trocar treinador; tem que mudar o sistema, o calendário, a exportação do nosso futebol como produto.”

 

O Brasil acabou de perder mais uma Copa do Mundo e as críticas se concentraram no técnico Tite. Há outros culpados que podem ser apontados?
Dentro de campo, as eliminações do Brasil não são frutos dos deuses do futebol. E a culpa não é só do Tite. A verdade é que, todas as vezes em que o Brasil foi campeão, foi apesar da CBF. 

A administração do futebol aqui é muito arcaica. Do ponto de vista político, a CBF não consegue ter humildade. Tomamos 7 a 1 da Alemanha, que fez um projeto de anos. Perdemos da França, que promoveu uma mudança no formato de seu futebol 

O Brasil tem 214 milhões de habitantes e o futebol como único esporte, mas o maior do mundo é o Messi, da Argentina. Hoje metade da população brasileira não tem o menor interesse pela seleção. 

Os times europeus dominam o coração do futebol enquanto aqui 40% do calendário é dedicado aos campeonatos estaduais, que não têm importância. A CBF mantém seu poder dando esse período às federações. 

Um time como o Flamengo contrata Arrascaeta e Gabigol, jogadores caros, mas os perde na Data Fifa. A CBF administra a série A sem equidade, já que os campeonatos não param em jogos da seleção. 

A seleção inglesa consegue que praticamente todos os seus jogadores sejam da Premier League, assim como na Alemanha e Espanha. Por que nós, uma potência do futebol, vivemos exportando os nossos? 

A desconexão do torcedor com a seleção está diretamente ligada à gestão da CBF.

Mudou algo na gestão com a entrada do Ednaldo Rodrigues, eleito em março de 2022 como presidente da CBF? Que problemas você enxerga na entidade, hoje?
O Ednaldo foi por 18 anos presidente da Federação Bahiana e não me consta que tenha transformado o futebol de lá numa potência. Esses anos todos não significam um bom trabalho; mas no Brasil a busca é pelo continuísmo, como se apenas ter experiência fosse suficiente. 

Essa visão é errada a ponto de a CBF, quando quatro presidentes foram excluídos, ter optado pelo mais velho dos candidatos. Por que ele tem mais capacidade do que os jovens? Não houve discussão de currículo ou capacidade gerencial. É um modelo que não existe no mundo real, só na CBF ou na Conmebol. 

Tenho amigos que acham que futebol é um elemento à parte da sociedade, então pode ser racista, homofóbico… Não, não pode. Na Europa, o futebol está muito alinhado aos valores sociais. É o contrário. O futebol precisa estar mais antenado porque representa a paixão da sua sociedade 

O atual presidente da CBF vai manter o status quo. A ruptura seria a liga [uma organização integrada pelas principais equipes brasileiras, hoje em discussão]. Mas, para dar certo, o Brasileirão tem que começar em fevereiro ou março, não em maio. 

Se o jornalista critica, perde a informação privilegiada. Na Fifa, proibiram a entrada de jornalistas que criticam a entidade. Esse é o modelo do futebol mundial, não é exclusivo do Brasil. As redes sociais, a digitalização, a repercussão do Cazé [o streamer Casimiro Miguel] vêm para romper esse pensamento. 

A CBF tem os jogadores, a concentração, os treinos, mas falta credibilidade. A Confederação também não tenta segurar a saída de nenhum jogador que desponta por aqui. 

Não devemos comemorar a saída de um jogador de 16 anos do Brasil. Somos o maior mercado do futebol do mundo em termos de audiência e praticantes, mas estamos nos apequenando.

O Brasil amarga uma crise em que os grandes talentos logo fazem as malas e vão embora. Você enxerga possíveis saídas para essa situação?
Vivemos nosso pior momento. Tem a questão cambial, o sonho do jogador, a vontade de fazer fortuna. Quando o atleta chega no futebol europeu, fica no banco, não vai ser protagonista. É raro o que aconteceu com o Vinícius Jr. O Real perdeu o Cristiano Ronaldo e foi obrigado a usar os garotos. 

Ao mesmo tempo, não damos a esses atletas nenhuma contrapartida para que fiquem no Brasil. Lá eles ganham muito mais para jogar no Real Madrid. Um clube como Palmeiras, Flamengo ou Santos não tem estrutura para segurar esses garotos. É culpa da CBF e de vários outros fatores. 

Essa é a morte do futebol brasileiro, porque os jogadores não têm nenhuma identificação com a torcida. O Neymar é um caso isoladíssimo. O Rodrygo mal jogou no Santos, assim como o Casemiro no São Paulo. 

A seleção brasileira é famosa, mas os times só ficam conhecidos lá fora por venderem jogadores. É muito pouco pela tradição do nosso futebol. A mudança que precisa acontecer é o que a NBA faz no basquete, trabalhar internamente o mercado para que tenha uma ordem em casa

Nos anos 1990, o futebol brasileiro trouxe o Romário e o Edmundo de volta. Hoje isso nunca aconteceria. A Premier League e a Bundesliga melhoraram enquanto nós pioramos. 

Minha crítica é que o modelo não funciona mais. O jogador vai embora cedo, joga uma Champions, mas não é campeão com o Brasil. 

Trazer o Guardiola ou o Ancelotti não vai funcionar, porque a CBF não vai dar as ferramentas para que entendam a cultura brasileira. O time já chega com dificuldade de jogo coletivo 

Somos campeões apesar da CBF e pela genialidade de nossos craques. Mas a França tem o Mbappé, que é mais jovem, mais rápido e tão habilidoso quanto o Neymar. 

No PSG e no Barcelona, o Neymar foi campeão não por ser ele, mas por estar dentro de um sistema de futebol moderno. O modelo da CBF não consegue mais ser campeão do mundo. A crítica tem que se voltar para eles. 

Não é só trocar treinador, tem que mudar o sistema, o calendário, a exportação do nosso futebol como produto. Vendemos a 70 milhões um jogador que depois vai valer 250 milhões. Não faz sentido continuar perdendo dinheiro 

Ainda somos uma cultura exportadora, não mudamos. Recebemos 50 milhões de euros, um dinheiro que não resolve nossos problemas. Vendemos nossos Vinicius Jr. para contratar Gabigol ou Daniel Alves em fim de carreira.

Falta organização e união para os próprios clubes? O que dificulta esses acordos?
Os sete maiores clubes do Brasil somados poderiam ser muito fortes. Só que, individualmente, são todos menores que a CBF. A CBF tem em caixa quase 800 milhões de reais, enquanto um time como o Flamengo tem no máximo 50 milhões. 

Não dá para comparar o poder econômico. A união dos clubes em uma liga é o único caminho. 

Essa desorganização é proposital, o calendário apertado, o fato de os times serem pouco conhecidos globalmente… é para que a seleção receba os melhores patrocínios 

Lá fora, é diferente: primeiro vêm os clubes, depois a seleção. Não dá para comparar a força de um Real Madrid com a seleção espanhola. Mesmo a seleção sendo penta, o Flamengo ou Corinthians têm uma força enorme, com mais de 300 milhões de fãs no mundo. 

O modelo é sucateado. O Corinthians briga com equipes como o Everton, da Inglaterra, porque lá em cima a disputa já está consolidada. Não tem como mudar. Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Chelsea, [Manchester] City. Como você vai se transformar num Bayern de Munique? 

O que temos que fazer é correr atrás da perda de mercado, com brasileiro gostando mais de time europeu do que daqui. Isso se reflete em peso de camisa e licenciamento de produtos. O filho quer estar na escolinha do PSG, não na do Flamengo. Estamos perdendo torcedores mirins 

Às vezes é até mais barato internacionalizar. Em Singapura, Alemanha e Austrália tem muitos torcedores brasileiros. 

Foi o que fizeram os times europeus. O Barcelona tem menos torcedores na Espanha do que o Real Madrid, mas tem mais torcedores pelo mundo. Está acontecendo no México. Com o número de mexicanos nos EUA, eles não vendem mais patrocínio de camisa só para os mexicanos. Vendem para o mercado americano. 

Como pode um clube permanecer com um modelo político que não é lucrativo e não mudar porque odeia o rival? Não tem uma visão econômica e de setor 

A política de clubes precisa da criação de uma liga, o que não está acontecendo. O Brasil precisa desenvolver um modelo sólido para isso.

Qual sua visão sobre o modelo de SAFs (Sociedade Anônima do Futebol), que começa a ser implementado no Brasil?
É um modelo comum nos EUA, uma visão mais mercantilista do esporte. Eu não concordo com, porque você pode ter um modelo híbrido, uma S.A., em que boa parte dos recursos vai para o clube, profissionalizando os cargos. 

Amir Somoggi, sócio-diretor da Sports Value.

Mas, olhando para o setor, é positivo. É mais fácil internacionalizar ou desenvolver um modelo mais moderno tendo donos que entendem o sistema. 

Também é importante para ter uma contrapartida social, que faz parte do DNA do futebol brasileiro. A coisa tem um impacto enorme na sociedade. 

O torcedor mais consciente do cenário mundial precisa saber que a equipe trabalha com valores mais positivos. Não resolve, mas atrai interesse de patrocinadores, de pessoas que não assistem futebol porque acham que ele é isolado da sociedade. 

Botafogo, Cruzeiro e Vasco são os times mais endividados do Brasil, então faz sentido entrar numa SAF agora, enquanto times como o Flamengo não têm interesse. É um dificultador.

Flamengo e Palmeiras vêm sendo apontados como cases de sucesso em gestão financeira e do futebol. O que eles fizeram de diferente?
No Flamengo, isso começou a acontecer em 2013, com a eleição do Bandeira de Mello. O Palmeiras tem a Crefisa, que presta uma ajuda substancial. O patrocínio é três vezes maior do que deveria. Mas o Palmeiras teve um equilíbrio no controle desses recursos que entraram. 

Além desses, Ceará, Fortaleza e Atlético-GO são bons exemplos de organização por seguirem três preceitos básicos: buscar a máxima eficiência, ter controle orçamentário e não gastar mais do que arrecada 

Na pandemia, enquanto o Corinthians dobrou o endividamento, o do Flamengo caiu pela metade. Atlético-GO e Cuiabá estão na primeira divisão com um orçamento enxuto, enquanto tem clube grande na série B. (Observação: o Atlético-GO acabou rebaixado na última rodada do Brasileirão.) 

Durante muito tempo, valia a pena se endividar para ser campeão. Com Corinthians e Cruzeiro foi assim. Hoje o Corinthians não consegue competir com a boa gestão do Flamengo. 

A boa gestão está entrando em campo, como na Europa. O Real Madrid, muito mais organizado do que o Barcelona em termos financeiros, foi campeão graças à gestão. Hoje eles têm um gasto salarial maior do que o do Barcelona, mas durante muito tempo o Barcelona gastava 20% de sua folha com o Messi. O Real nunca fez isso

Para ser grande como Flamengo e Palmeiras, tem que ter equilíbrio. Clubes como Corinthians, Cruzeiro e São Paulo não conseguiram seguir a receita: ampliar recursos, equilibrar o orçamento e reduzir o endividamento.

Hoje está na moda trazer treinadores portugueses, inclusive com a possibilidade de um estrangeiro assumir a seleção. O que você acha dessa tendência?
É muito cômodo dizer que a culpa é dos treinadores, mas eles têm responsabilidade. Precisam ter humildade de passar pelas etapas necessárias. Ir para a Europa, gerir um time de segunda divisão e só depois assumir uma equipe grande. O futebol brasileiro não é tático, é de individualidade, correria e habilidade. 

No Brasil, o treinador português vem, traz uma metodologia nova e é campeão. O Abel Ferreira viu que o calendário brasileiro era insano e foi buscar jogadores de alta capacidade que não costumavam ser convocados pela seleção. Eles têm metodologia e são muito capazes

Em 2000, a Alemanha percebeu que outras seleções estavam passando à frente. Ali começaram um trabalho que durou as Copas de 2006 e 2010. Só foram ganhar o título em 2014 no Brasil. O modelo do tiki-taka na seleção espanhola levou a Copa em 2010. 

O futebol francês evoluiu desde 1998 graças às escolinhas de times franceses na África. A gestão hoje é fundamental para decisões esportivas. Alemanha, Espanha e França passaram por administrações que pensaram um futebol mais moderno. 

Não adianta buscar o Ancelotti para a seleção. Tem que direcionar a CBF a um objetivo estratégico mais amplo. Não é copiar modelo. 

A Alemanha perdeu, mas o futebol alemão é muito mais habilidoso do que há 20 anos. O torcedor da seleção inglesa hoje vê o atacante do Tottenham e do Chelsea em campo, como era o Brasil em 1982 

No dia em que a liga brasileira representar a seleção, talvez sejamos campeões com uma maior identificação com os torcedores. É um sonho.

O futebol feminino avançou bastante na última década. Quais devem ser os próximos passos?
Me assusta que lá fora ele já esteja absolutamente maduro, enquanto aqui estamos começando. É o esporte que mais cresce no mundo. 

Para se ter uma ideia, a audiência da Copa do Mundo feminina cresce até 50% a cada edição. Aquele que não gosta do masculino abraça o futebol feminino. Não é visto só como uma modalidade, tem um propósito maior 

A faixa em que o futebol feminino mais cresce no mundo é dos 18 aos 24 anos. Isso rejuvenesce as marcas, que não ficam só nas mulheres, mas nos jovens. 

No Brasil, 51% da população é feminina, mas cinco vezes menos mulheres jogam futebol que os homens. Isso impacta na prática, no consumo e na audiência. Gasta-se cada vez mais com o futebol feminino na TV para que o esporte cresça em receita. Mas temos um modelo de transmissão já saturado.

Houve um movimento da CBF para tirar a conotação política da camisa  amarela da seleção. Você percebe algum impacto nesse sentido?
Eu mesmo não consigo mais usar a camisa verde e amarela. É uma pena porque é uma camisa que desperta muita paixão. É péssimo que uma parte da população não queira usar.

A Copa aqui é igual Carnaval, união dos amigos, a família comendo churrasco. Não é só a paixão pela seleção que você vê na Argentina. 

Em 2002, quando a seleção brasileira se tornou a maior potência futebolística, a CBF já era odiada pela população. Perdeu em 2006, 2010 e 2014. Agora perdeu e está ainda pior 

Não pode romper, tem que manter a paixão. Foi o que aconteceu com a CBF e a população brasileira. Os escândalos de corrupção, a falta de vitórias, o 7 a 1 em casa, essa desconexão do time com a população. Ninguém volta a torcer para o Brasil depois. 

O Neymar perde para o Messi como ídolo aqui. A gente perdeu essa conexão com a seleção por conta da CBF e dos clubes, que não souberam cobrar e somar.

O que precisa mudar na forma de pensar para que nosso futebol volte a ser competitivo?
Primeiro que camisa não ganha jogo. O Neymar escolheu ser o quinto cobrador de pênalti na seleção, mas não chegamos ao quinto pênalti. Ele tinha que ter pegado a bola para mostrar como se faz. Nessa hora, falta um treinador para dizer isso. 

Tem que trabalhar em prol do coletivo, com consciência tática e cada jogador dando sua contribuição. Ter uma estratégia é obrigação do estafe, da CBF. Pode ver quantas vezes o Messi cai em relação ao Neymar; o jogador foi treinado para não cair. 

Nosso maior problema é não ter a humildade para reconhecer a mudança pela qual precisamos passar para chegar a um futebol mais contemporâneo.

Dá para tirar lições da vitória da Argentina?
A CBF fatura mais que a AFA (Associação do Futebol Argentino), mas o futebol de lá, mesmo com muito menos recursos, é o segundo em exportação de atletas no mundo. Isso somado ao estilo do jogador argentino, mais orientado às táticas do futebol, o que ajudou no desempenho da equipe. 

Outro aspecto importante é o nível educacional da Argentina, que tem muitos atletas com o segundo grau completo. Isso ajuda no entendimento do jogo e na adaptação à vida na Europa 

Além disso, a raça faz parte do DNA do jogador de lá. Atletas brasileiros são muito habilidosos, mas esse contexto todo ajuda a explicar a vitória argentina frente à eliminação do Brasil.

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