Não é qualquer CFO que consegue sair do mundo corporativo e se propõe a reformular a gestão de uma empresa do segmento da economia criativa. É preciso ser curioso e intraempreendedor.
Essa é a visão de Andre Gaigher, 38, CEO dos Estúdios Flow – produtora paulista e maior hub de podcasts do Brasil, com mais de 60 horas semanais de conteúdo ao vivo, cerca de 12 milhões de inscritos no YouTube e mais de 2 bilhões de visualizações.
Gaigher está nos Estúdios Flow desde maio de 2021. Chegou para apresentar um projeto direcionado ao mundo corporativo – o Kritikê Podcast – que continua no ar. Ele vinha de empresas gigantes como P&G, L’Oréal e Uber; durante a última passagem, sofreu um burnout.
Como Chief Curiosity Officer, seu mandato era achar formas de crescer o negócio sem que o time perdesse a cultura cooperativista. Achou e se tornou CEO da empresa.
Os Estúdios Flow nasceram a partir do Flow Podcast, apresentado por Igor Coelho, o Igor 3K, e Bruno Monteiro Aiub, o Monark, que se tornaram sócios em 2018. Isso durou até fevereiro de 2022. Naquele mês, Monark questionou no podcast a impossibilidade de existir um partido político nazista no Brasil, e passou a ser alvo de uma campanha massiva de cancelamento.
O caso tomou proporções épicas: a empresa perdeu 8 milhões de reais em contratos firmados de patrocínios e o podcaster recebeu duras críticas por sua fala que ia contra os princípios básicos da Constituição. E os avanços que Gaigher tinha conseguido durante seu primeiro ano ali se tornaram pó.
Depois da tormenta e da saída de Monark da sociedade, os Estúdios Flow embarcaram em uma dura reconstrução, e fecharam o ano com um prejuízo de 2 milhões de reais. Atualmente, o faturamento voltou ao nível de janeiro de 2022, ou seja, antes do “Monark Day”. E a expectativa é encerrar 2023 faturando 24 milhões de reais.
Gaigher hoje toca a reformulação da produtora, dividida em cinco verticais de negócios — uma delas, o Flow Games, já virou uma operação separada.
Além disso, há mais três empresas periféricas – o Flow Labs, para serviços de branded content; a NV99, espaço de conexão entre os criadores e suas comunidades, com possibilidade de direcionamento para streaming na Twitch e YouTube, e-commerce, subscrição e venda de emblemas; e a Golden Pill, agência que conecta marcas e criadores.
Agora, uma nova carta lançada à mesa é o programa Flow News, com debates, notícias e participação do jornalista Carlos Tramontina, que tem estreia programada (mas não confirmada) para 13 de março.
A seguir, Andre Gaigher fala ao Draft, entre outros temas, sobre as mudanças de gestão nos Estúdios Flow e o seu papel diante da crise de reputação sofrida em 2022:
Depois que você se tornou host de um podcast – Kritikê – e CEO de uma produtora de conteúdo – os Estúdios Flow – você acha que ainda consegue ser simplesmente um entrevistado?
Acho que sim, porque uma coisa que a gente aprendeu aqui é o valor da conversa. A entrevista, muitas vezes, vem com direcionamentos mínimos sobre o que falar.
Eu até digo que, infelizmente, os episódios do Kritikê acabam sendo um pouco parecidos, porque, muitas vezes, a pessoa [convidada] fala muito mais de negócios, tem de contar a história dela… Pra mim, quanto mais aberta for a conversa, melhor
Aprendi a gostar das duas coisas [entrevista e conversa]. É como gostar de filmes e séries – são coisas distintas e ambas são boas.
Para quem está há pouco tempo no mercado de entretenimento – em comparação aos 13 anos que ficou no mundo corporativo –, você já está esperto…
Sim. A gente pega muito rápido. Conversamos com tanta gente diferente – diariamente passam aqui cerca de 20 influenciadores ou pessoas influentes nos seus segmentos.
Com o tempo, fica muito claro quem está aqui pela conversa, quem está aqui pela oportunidade, quem está aqui pela divulgação… tem todos os peixes no mar, né?
Estar no dia a dia agilizou o processo de entender mais o que move as pessoas. E não entro muito no senso de julgamento: entendo tanto a pessoa que vem promover um livro no Flow quanto a que não precisa disso e quer conversar sobre pautas pessoais.
Você fala de convidados, mas quando fiz a pergunta, imaginei falar dos formatos a partir do ponto de vista dos criadores. Já ouvi criadores da casa dizendo que é melhor ter uma conversa do que ter uma entrevista. Como vocês fazem esse balanço entre estruturas tão diferentes?
Vai um pouco da adaptação ao público que a gente quer atingir e dos testes que fazemos ao longo do tempo.
Por exemplo, no começo, o próprio Kritikê tentou ser um formato mais aberto, no qual os CEOs poderiam chegar e conversar sobre assuntos aleatórios. Só que a gente sabe como é o mundo da comunicação, como ele sobrevive e o quanto as pessoas que estão nessas posições não podem errar…
Então, tirando quem precisa muito ou quem já está muito acostumado com esse meio, a maioria se coloca fora desse circuito. Nesse caso, a gente usa a liberdade [que existe na produtora] para adaptar o formato
Percebemos que o Kritikê precisava fazer mais perguntas dentro de uma caixinha. Quando a gente sente que a pessoa quer falar, abrimos para ela puxar assuntos. Mas em geral, como os convidados são do mundo corporativo, eu não posso colocá-los numa situação em que eu pergunte algo que pode complicá-los. Também tem esse meio do caminho
Acho que o grande desafio para qualquer pessoa, que cria conteúdo – ou uma empresa –, é como fazer para que seja sustentável ao longo do tempo, e também para que isso fique claro em um modelo de gestão. Quais são as linhas de liberdade e quais são as linhas de respeito que a gente tem?
Cada pessoa traz um histórico e a gente também cuida um pouco da experiência dos convidados. A primeira coisa para qualquer pessoa que vem ao Flow Podcast, ao Kritikê ou qualquer programa é que a experiência [no estúdio] tem de ser boa – como ela foi atendida, recebida e o que viu na equipe
Existe também o cuidado com a experiência de como a audiência que assistiu ao programa comenta diretamente com o convidado: “Gostei muito, estava superlegal”. E depois, tem a experiência de como isso reverbera na internet – é a parte em que temos menos controle.
É isso que a gente tenta fazer – criar um salão de festas preparado para grandes acontecimentos e, a partir daí, vai depender muito de momentos, perguntas… Temos inúmeros casos inesperados que se tornaram marcantes.
Como CEO, por definição você supervisiona tudo. Pode contar em qual área você influi mais hoje em dia? E como se dá a dinâmica entre você e Gianluca Eugenio, o diretor do programa?
A gente usou o tempo de que precisou para detalhar essas liberdades de criação versus gestão.
Imagine que eu vim do mundo corporativo muito tradicional. Vim de empresas listadas na bolsa de valores americana, com regras de SOX [medidas de boas práticas de governança corporativa que resguardam empresas, governos, investidores e consumidores de uma eventual fraude contábil] – regras contábeis, financeiras, de ética, de tudo no mais alto padrão global – P&G, L’Oreal e Uber.
Quando você chega perto de pessoas que estão empreendendo, é importante que você faça uma jornada para que essas pessoas aprendam algumas dores de maneira controlada, que depois vão virar ensinamentos que justificam mudanças de regras
Vou dar um exemplo prático. Um belo dia, o Gian me fala que vai trazer uma pessoa aqui para ajudar, sem ganhar nada. Aí eu disse que não funcionaria.
Ele me questiona: por quê? E aí eu explico que, no momento inicial, a pessoa está entusiasmada. No segundo mês, ela quer receber salário, ela se compara com outras pessoas — e vira um problema. A oportunidade se torna um fardo negativo que a gente tem de carregar. E é negativo para a pessoa, porque ela alimenta sonhos irreais.
Gian lembra que foi assim que ele começou com o Igor, no Flow Podcast. E eu disse: “Entendo que quando você é pequeno, tem dez pessoas no máximo, tudo funciona. É um cooperativismo com regras claras, no começo. Daí pra frente, são regras que a gente tem de estabelecer”.
Imagine eu chegar aos Estúdios Flow e dizer logo no começo: “Agora a regra é: só eu contrato; você não fala mais quem é bom ou não para o negócio”. Ia ser um choque muito grande.
Falo sempre que na construção do negócio, a gente passa por movimentos [alternados] de ordem e caos.
Primeiro, a gente gera um certo caos: “Pessoal, espalhem-se e façam o melhor trabalho que puderem”. [É quando] temos cinco produtoras sem um grande direcionamento, para testar ideias. Depois, vem o momento de ordem: “Vamos discutir essas ideias, ver qual deu mais certo, e como mostrar os benefícios”
É assim que a gente foi modelando o negócio que começou com o podcast; depois surgiu uma vertical; na sequência vieram mais verticais; e agora estamos criando empresas periféricas às verticais.
Você mencionou a sua história em grandes corporações como CFO. Como foi sua adaptação de executivo que sai de uma empresa estruturada e vem para o empreendedorismo criativo? Que é, inclusive, diferente do empreendedor de uma fintech, por exemplo.
Acho que tenho de contar sobre o momento em que eu me encontrava quando chego aqui.
Se você que lê esta matéria é um CFO que quer mudar completamente de carreira, cuidado. O primeiro ponto é: eu sempre fui um intraempreendedor dentro das empresas onde trabalhei. Eu liderava grupos organizacionais, eu liderava grupos de apresentação. Eu era o financeiro, mas tinha uma coordenação em vendas
Sempre me testei e fui construindo o que eu chamo de “cinto [de utilidades] do Batman” – esses skills separados que me agregassem para uma visão do todo
Nunca fiz somente algo que foi pedido. Eu considerava parte do meu desenvolvimento profissional; era como se eu entregasse para companhia, obviamente, mas eu fazia pra mim, pra eu aprender.
Existe um lado de a empresa fornecer esse tipo de possibilidade para você exercer novas funções, mas também vai muito do profissional buscar como ele quer fazer parte daquele grupo maior.
Não é só fazer o seu trabalho — por exemplo, controle orçamentário. Se a pessoa faz isso de manhã e de tarde, chega de noite e “se reserva”, [então ela] não se educa mais, nem se aprimora…
Foi nesse ponto final aonde eu cheguei e estava me enquadrando na Uber: quando você deixa de ser uma pessoa efetiva para a empresa – como eu sempre me vi – e passa a ser quase um detrator!
Inicialmente, eu tinha uma equipe de cinco pessoas; depois reduziu para duas; depois ficamos eu e mais uma pessoa. Aí o trabalho de CFO basicamente deixa de existir e eu passo a ser um gestor de relatórios diários…
Eu geria KPIs diariamente e me senti muito subutilizado. Como sou o tipo de profissional que trabalha muito mais por propósito e aproveitando as oportunidades da empresa, eu me senti meio preso.
Comecei a discutir alguma mudança no meu modelo de trabalho e até ofereci de baixarem meu salário, durante a época de pandemia, para poder contratar um analista. “Eu posso fazer o trabalho de um analista, não tem problema nenhum, mas acho que vocês estão pagando demais por isso”.
Recomendei um analista que conhecia da L’Oreal. Quando saí [da Uber], extinguiram a posição de CFO, a gerente permaneceu e ele entrou exatamente nessa posição de analista e deu conta do negócio, porque era, de fato, um modelo mais simples.
Conto isso e as pessoas têm dificuldade de entender que a minha função nunca foi e nunca vai ser perpetuar o meu cargo, a minha posição. Eu sempre trabalhei para, em dois anos, poder sair de um lugar sem que as pessoas precisassem de mim
A minha motivação é deixar um legado, mais do que proteger o meu castelo. Foi isso que me levou a fazer esses movimentos e que também deixou claro, quando chego aqui nos Estúdios Flow, que o meu interesse é na construção do negócio e não ser o CFO ou o CEO.
Tanto que quando cheguei, disse que era CCO – Chief Curiosity Officer. Era o que eu entendia que tinha de fazer.
Eu tinha de ser um cara curioso para olhar as dores que um empreendedor de fora de uma escola de empreendedorismo não entenderia muito bem; e planejar como fazer para ganhar forma, enfrentando problemas de recurso orçamentário. Porque, obviamente, uma empresa pequena enfrenta muito mais voos pequenos, testes e acertos.
Foi esse o processo da minha migração de trabalho e como tive de mudar para que o Igor [3K, fundador da produtora] entendesse que a construção que faço aqui não é pra mim; é muito mais para as pessoas que são envolvidas.
Você chegou aos Estúdios Flow em 2021, como criador de um podcast, junto com Mário Speziano (depois entrou o Diego Baltazar). Estava no meio de um período sabático, após um burnout. Emplacou a proposta do podcast quase no susto. Como você foi de podcaster a CEO? O que te atraiu?
O começo da história foi assim: eu estava no sabático e já estudava dois assuntos que me geraram muita curiosidade: games, e conteúdos e fãs.
Eu me aprofundei no FIFA – o jogo de futebol – não só jogando muitas horas, mas estudando o jogo. Como era o mercado dentro do jogo; como funcionava o processo até uma carta ser selecionada como especial; que tipo de dinamismo isso gerava com influenciadores e criadores de conteúdo?
Foi a maneira criativa de me manter ocupado. E também acompanhei muito do Big Brother e comecei a estudar o mercado de [negócios para] fãs
Hoje, existem empresas como Fanstation, que vende NFTs de ídolos; tem empresas que vendem memorabilia de ídolos; tem empresas que fazem viagens de ídolos… tem uma economia gigantesca por trás disso.
Um dia, Mário Speziano me liga, dizendo que estava a fim de fazer um podcast. Perguntou se eu topava. Como eu não estava fazendo nada, já entendia um pouco do assunto, topei na hora.
Concluímos que, por termos um passado no mundo corporativo, tínhamos de ir até quem melhor sabe fazer podcast para ver o que a gente conseguia de dicas. Assim, pelo menos, não sairíamos gastando dinheiro. Fomos bater à porta do Igor…
Em uma das conversas para montar o Kritikê, ofereci ajuda ao Igor para organizar a casa. Igor perguntou de que eu precisava – salário, computador, alguma coisa? Eu disse: “Não. Eu tenho um notebook e salário a gente vê depois”
Naquele momento, o faturamento mensal era 200 mil reais para uma equipe de 10 pessoas. Então, se eu pedisse um salário como o que eu tinha no mundo corporativo, já receberia um não. Aí, sugeri de não ter salário, mas receber uma ajuda de custos para vir ao estúdio todos os dias. E começamos assim.
Primeiro, montei a equipe, que foi aumentando aos poucos: uma pessoa para o comercial, uma para o marketing… aí trouxe duas pessoas para “processualizar” a parte de produção de conteúdo; na sequência veio o financeiro porque já tinha muita coisa pra fazer.
Com esse modelo de gestão e com o crescimento do cenário no Brasil, a gente passou o faturamento para mais de 1,5 milhão [de reais] por mês em 2021 – subiu quase dez vezes. Só aí eu acertei um salário.
Efetivamente, até o cancelamento, recebi salário em janeiro de 2022, porque em fevereiro aconteceu o “Monark Day”. Nesse momento, a gente tinha 120 funcionários e a nossa receita cai a zero – caiu 93% naquele mês
A produtora estava em crescimento, tínhamos equipamentos e a força humana — mas não tínhamos mais o dinheiro, a rentabilidade pra manter essa máquina funcionando.
Antes de falarmos de “Monark Day”, queria saber: o que você viu nesse mercado de produção de conteúdo que te fez deixar de lado a volta para o mercado corporativo? Teve algo a ver com o burnout, ou mais com sua visão do mercado de podcast? Afinal, o que te atraiu?
Vou definir em três pontos. Primeiro foi a produtora, a natureza humana que eles têm.
Eu vim do mundo corporativo e entendo bem o que é uma discussão comercial e seus vieses. Aqui [nos Estúdios Flow], as discussões eram sempre pautadas em como fazer a produtora maior no sentido de prestar um serviço melhor para as pessoas, e promover mais liberdade e diálogo. Então, os [nossos] propósitos se encaixaram.
Se eu queria colocar o meu esforço no mundo através de algo em que acredito — uma empresa onde os sócios pensam mais em crescer a comunicação e dar oportunidade do que em comprar carros importados ou joias —, era com esse tipo de sócio que eu me envolveria.
O segundo ponto foi a liberdade de criação. Como disse, sempre fui um intraempreendedor e, nessa posição, tenho quase 100% de liberdade para criar novos conteúdos – tudo isso vem, obviamente, com maturidade e o entendimento da cultura, que adquiri ao longo do tempo.
Eu já vim embarcado na cultura. Entendia o que era o tradicional, mas tinha uma missão de achar um equilíbrio entre o cooperativismo e o capitalismo. Pra mim, isso é uma coisa sensacional.
Acredito que o capitalismo consciente é o futuro, e eles tentavam genuinamente montar uma versão disso, sem mesmo ter a compreensão clara de o que é uma empresa tradicional e o que é uma empresa cooperativista e dos modelos de negócio que existem
Então, pra mim era um grande desafio, muito maior do que estar em uma empresa que atende pelos números apenas. O cooperativismo tem essa contraposição – a prioridade são as pessoas. A gente está no meio do caminho.
Sempre dizemos que finanças é responsabilidade. Precisamos de responsabilidade financeira, porque há vidas que dependem do nosso trabalho aqui.
Do outro lado, tenho de pensar nas pessoas. Por exemplo, lay-offs [pausa temporária no contrato de trabalho] e demissões em massa como se tem visto… eu fico até um pouco orgulhoso do que a gente fez aqui nos Estúdios Flow.
A resposta mais tradicional [para a crise gerada pelo cancelamento] é: corta metade [das pessoas] e depois a gente vê o que faz. Conseguimos superar tudo sem dispensar ninguém, exatamente porque as pessoas que entram aqui têm essa cultura do fazer. A gente não quer “ficar rico”
Obviamente, se chegarmos a um tamanho tão exponencial que isso faça sentido, [seria] muito legal… mas queremos mais [que as] pessoas possam trabalhar felizes, criando seus conteúdos e sem terem de passar por todas as dores que um criador de conteúdo passa hoje.
O terceiro ponto é que identifiquei um elo em comum – o burnout. Criadores de conteúdo sofrem demais com a pressão para estar na mídia, estar no hype, fazer algo relevante. Muitas vezes, isso depende do dinheiro deles para tirar um conteúdo do papel, investir no incerto.
Em teoria, você pode ter um trabalho corporativo subsequente – todos os dias –, que é um caminho mais evolutivo e, ainda assim, ter burnout. Isso pra mim era uma contradição.
Aqui, pude continuar com meus dois propósitos: [como podcaster do Kritikê] falar com a pessoa que está no mundo corporativo sobre como encontrar motivação dentro de si e o caminho que vai tirá-la da prisão dos pensamentos negativos; e, de outro lado, [como CEO] ajudar criadores a não sentirem a dor do burnout criativo
No mundo corporativo, bem ou mal, tive um suporte gigantesco [para enfrentar o burnout]. Mesmo depois que saí da Uber, ainda tive seis meses de acompanhamento médico. Hoje, no Brasil e no mundo, está cheio de criador de conteúdo sem seguro de vida e nem seguro de saúde.
Esse é o ponto que uniu o propósito e as minhas competências com a possibilidade de [me] comunicar com esses dois tipos de público — o que pra mim faz sentido. Essas foram as principais razões pra me juntar aos Estúdios Flow.
Seu primeiro ano nos Estúdios Flow foi de construção. Já 2022 foi um ano duro, devido ao episódio Monark Day que culminou com a saída de Monark da sociedade e perda de contratos de patrocínio. Em termos pessoais, como foi essa gestão de crise para você? Teve medo de voltar ao estado de burnout?
O nosso maior asset aqui é a cultura. A gente tem uma liberdade inclusiva de fato.
Eu entendo as pessoas que cancelaram o Monark, não digo que elas são malucas ou não sabem o que, na verdade, o Monark estava querendo dizer… Não vou entrar por esse caminho, porque acho que é um caminho errado, inclusive.
A realidade da empresa – que é sobre a qual eu posso contar – sempre foi muito inclusiva. Justamente por não se encaixar no modelo corporativo tradicional, já vínhamos sofrendo ataques de alguns lugares mais preocupados com a militância do que com o diálogo
E eu entendo isso. Mas, internamente, na época, eu tinha mais de 60% da liderança diversa – LGBT, mulheres, negros, negras. Entre as top 10 posições, seis eram ocupadas por pessoas das ditas minorias, vamos falar assim. Então, é destoante o que era ali uma conversa com o conteúdo produzido versus o que era a gestão do dia a dia.
Entendo tanto quem viveu dores e critica o Monark dizendo que aquilo levou para um ambiente de ódio e é negativo para a sociedade.
Concordo que o Monark usou um exemplo péssimo para uma coisa esquisita. Mas, ao mesmo tempo, o Monark não é nazista, ele é casado com uma mulher negra e nordestina. Ela sofreu ataques do tipo: “Você está casada com um nazista!”
Voltando para a gestão de crise, havia dois trabalhos para se fazer. Um era o trabalho interno — de recomendação, de experiência e de administração do problema —, que eu podia fazer; o outro, o que a pessoa decide fazer com essa informação.
Teve vários momentos que recomendamos ao Monark para esperar um pouco o tempo passar, para ele [se] conectar com as pessoas corretas; para ele se posicionar de uma maneira clara, não tentar defender aquele ponto, porque não era o momento… E ele tomou decisões sozinho. Ele mesmo achou um contato e conseguiu uma entrevista no New York Times.
Perguntei se ele achava que aquela era a melhor alternativa naquele momento. Ele decidiu seguir adiante.
Existiu um trabalho de contenção, mas ao mesmo tempo, existia um respeito, porque ele era uma das pessoas que estavam aqui à frente, desde o começo. Então, eu não podia dizer a eles o que podia ou não podia!
O que eu fiz por eles naquele momento foi dizer qual seria o futuro dos Estúdios Flow com eles [Igor e Monark] juntos; e qual seria o futuro se eles se separassem. E teria de ser uma separação real, não podia ser uma “separação média”
“Vocês dois querem ficar juntos? Dá pra ficar? Dá! Acho que vai ser muito complexo, mas se for isso, a gente pode mandar 80 pessoas embora de cara; volta ao que era antes, volta a ter uma audiência pequena e vocês vão ter de achar outras formas de monetizar, mas a empresa continua. O que vocês querem prezar agora – a empresa ou isso que vocês têm com o Flow Podcast, a conversa?”
Mais uma vez, e não pra minha surpresa, a prioridade foi as pessoas. Isso reforçou pra mim que eu fazia a coisa correta.
Pô, o Monark abandonou o sonho da vida dele para que as pessoas não fossem prejudicadas. Quem sou eu pra largar o barco agora?
Eu me senti meio que na obrigação de fazer dar certo, coloquei aportes pessoais, inclusive, durante esse período. Reduzimos o teto salarial aqui, que foi pra 10 mil reais – Igor, eu, passamos a receber isso
Pessoalmente foi um período muito difícil. Tomei riscos, porque tudo que construí durante minha carreira em relação a meu colchão financeiro, eu coloquei pra jogo, porque acreditava no que a gente estava fazendo. Aí passo a ser parte como sócio da vertical Flow S.A.
Isso vem na hora certa, quando eu já estava maduro, já tinha tido experiências profissionais de excelência executiva e também de não-excelência executiva – que foi o meu burnout –, então, sob o ponto de vista do trabalho, para mim foi bom.
Porque é aquele famoso momento em que você arregaça as mangas e começa a ver diariamente as vitórias.
Pagar o salário no final do mês é uma vitória – passamos cinco meses em que, 24 horas antes da data de pagar os salários, a gente não tinha os recursos ainda
Foram muitos meses de mangas arregaçadas no trabalho, o que me ajudou a recuperar a vontade de trabalhar, que eu não sentia tanto quando estava no mundo corporativo sem grandes projeções de trabalho, não de status ou de salário.
Quem trabalha na economia criativa, ao se colocar à frente de uma câmera, sempre corre o risco de a audiência confundir o que é o programa ou conteúdo produzido, o que é a opinião da pessoa e o que é a empresa. O “Monark Day” foi o dia em que isso ficou mais tangível. Esse ruído pode voltar a acontecer com os Estúdios Flow? Como a empresa faz, hoje, o balanço entre autenticidade e espontaneidade dos creators sem prejudicar acordos comerciais?
É, concordo. Acho que parte da solução é estar próximo, fazer encontros em que a gente reforça a nossa cultura.
Quando a cultura é de diálogo, ela tende a ser muito mais aberta e propositiva. A gente sempre fala que as pessoas podem se posicionar como elas quiserem, mas é preciso aprender a diferenciar o que é um posicionamento sobre o que você acredita, de uma provocação e uma ironia.
Estamos vivendo um momento de tensão; se você vai ser irônico, tem de deixar evidente a ironia. Foi-se o tempo em que você podia ser irônico por ser irônico. Agora, a pessoa pega isso e fala como se fosse literal
Então, tem um pouco de educação que a gente passa. Mas ainda acho que no nível de julgamento e cancelamento, é uma minoria. Óbvio que temos tentado evitar confrontos diretos com pessoas assim, porque não faz nenhum sentido pra ninguém.
O Big Brother é um exemplo desse tipo de discussão. Ele é o “domo do cancelamento diário” – a qualquer momento pode acontecer um cancelamento ali, porque há muita gente assistindo.
Acho importante também a velocidade de tratar assuntos. Por exemplo, já teve casos aqui de alguém fazer uma piadinha que não viralizou, e mesmo assim sentamos pra conversar: “Entendo que não foi por mal, que você não quis dizer isso, mas deixa eu te dizer o que as pessoas poderiam ter feito com esse caso…”
Essa é a parte de educação e do refinamento. Na próxima vez, a pessoa está um pouco mais preparada, nem que seja para dizer algo assim: “Gente, vou esclarecer que estou fazendo uma piada com alguém de quem eu gosto e que está na minha frente”. E tem de haver diálogo, que é um bom parâmetro.
Quando você enfrenta momentos de cancelamento, tem uma escolha a fazer por três caminhos
O número um é negar. Se você responder será para 1% das pessoas, sendo que 99% das pessoas sabe que você não é desse jeito. A maioria das pessoas que escreveu sobre o Monark nunca tinha assistido um [episódio do] Flow Podcast inteiro.
O número dois é partir pro enfrentamento sobre o que falaram de ruim. Você pode partir para a absolvição de tudo que é “política-esquerdísticamente correto”, como alguns dizem.
O que é isso? É: “a partir de agora, a gente não fala mais nada, tudo vai ser sobre diversidade… tudo vai ser sobre pautas mais à esquerda” – que é um pouco mais canceladora, eu diria.
E existe o caminho do meio, que é focar no diálogo. “Gente, entendemos isso, estamos fazendo um trabalho nestes pontos aqui em relação a minorias, diversidade, inclusão etc.”. Só que eu não vou lacrar a um ponto, por exemplo, de criar um programa nessa vertente para passar o dia inteiro achando problema na criação dos outros!
Essa foi a linha que a gente tentou. Nós temos de entender a nossa responsabilidade social e, de alguma maneira, temos de mostrar melhor para o público essa nossa diversidade.
Na P&G eu ouvia que “percepção é realidade”. Hoje, vejo que percepção não é realidade. Mas justamente como eu vejo isso, o que tento comunicar aos meus criadores é: tenta garantir que a percepção que está sendo vista é a sua realidade.
E fazendo um mea culpa de como as coisas aconteceram com o Monark, acho que ele não teve esse apego de mostrar a realidade. Ele quis enfrentar a percepção. E talvez aí a coisa tenha descambado
Depois, entendemos que algumas questões são mais complexas do que parecem. Agora, por exemplo, discute-se no Big Brother a agressividade feminina. A agressividade masculina foi cancelada com razão! Mas a agressividade feminina não está sob julgamento, porque é como se tudo fosse culpa do machismo estrutural.
Se a gente está tendo um diálogo, temos de discutir as duas coisas; há excessos dos dois lados. Tem excessos de classes, de gêneros… de tudo tem excesso.
E quanto mais a gente vai se amplificando – e a comunicação ampla da internet nos permite isso –, mais surgem conflitos, com os quais a gente tem de lidar com o diálogo.
Eu peço que o que direi a seguir seja usado com muito apreço e cuidado, sem tirar do contexto em que estamos conversando.
Por exemplo, recentemente teve uma [mulher] transsexual que disse que heterossexuais deveriam se relacionar com trans para não serem machistas. Transsexuais devem ter todos os direitos, ainda mais na realidade violenta que a gente vê contra essas pessoas no Brasil. Agora, a imposição do outro lado também é um problema!
A gente vê como a missão dos Estúdios Flow tentar trazer polos opostos, com o máximo de cuidado possível, para que conversem e cheguem no modelo da sociedade em que a gente vive hoje. Então, se numa semana temos uma pauta comunista no Flow Podcast, na seguinte, teremos uma pauta liberalista.
A gente vai discutir tentando, naquele momento, prezar quão importante é a conversa para que ambos os lados cheguem um pouquinho mais pro centro — e, com o tempo, se diminua a polarização
Acho que esse é o nosso papel, a nossa missão, o nosso exercício. É trazer todos os pontos que são válidos, sem necessariamente ter de comprar 100% de uma pauta.
O que significa para a produtora trazer uma pessoa como Carlos Tramontina, que ficou 43 anos na Rede Globo?
Estamos nos sentindo honrados e muito felizes de ter essa oportunidade. O Tramontina chega depois de muita conversa, houve um namoro de quase seis meses para entender o que que ele iria fazer. Talvez até por isso a gente conquistou ele.
Ele já está com o canal dele na NV99 [ali há 27 episódios do conteúdo original intitulado “6 e ônibus”] e só em camisetas, já vendeu mais de 20 mil reais.
Diversos jornalistas que saíram da Globo, de uma realidade dos anos 2000 – salários muito altos, audiência consolidada e o mercado comercial completamente focado na TV aberta –, tentaram propostas [de conteúdo] para internet que vinham com modelos de televisão. E aí não tem como manter isso. É muito caro, não tem um negócio.
Desde o começo, a conversa com o Tramontina foi muito próxima do que foi a minha. “Tramontina, o que te faz feliz? O que você quer fazer e como você quer fazer? Você quer fazer isso mesmo, então, a gente vai construir com tempo, porque as coisas não nascem do dia pra noite.”
Com a internet tem uma coisa também… as pessoas põem, hoje, um caminhão de dinheiro e querem ter 1 milhão de views amanhã. Não vai ser assim! É no longo prazo
Algumas empresas já sabem disso e têm trabalhado nesse sentido – o Guaraná faz um ótimo trabalho com o Coisa Nossa, pra mim o canal de branded content mais bem trabalhado do Brasil. Eles aprenderam isso muito cedo. Outras empresas vão aprender ainda com o tempo. E parte do meu papel é mostrar isso.
O Tramontina vem para uma construção maior, ele será sócio do Flow News. Esperamos tê-lo, no futuro, como conselheiro, como alguém que nos ajude a entender as dores que a gente não entende tão bem – dores do jornalismo, que já sentimos pelas conversas.
Por exemplo, quantos jornalistas não têm mais oportunidade de fazer uma viagem a trabalho para investigar uma matéria mais a fundo? Quantos têm de trabalhar com seis, sete, oito matérias por dia?
A gente vai tentar construir diferente. Temos nos aproximado de pessoas que nos dão apoio, porque é uma coisa independente, é uma criação que começa do zero — mas a gente sabe que a Globo também começou com uma pessoa tendo uma ideia
Vamos precisar de resiliência nos processos e atrair as pessoas certas pro nosso caminho.
Nascida na periferia de Manaus, Rosângela Menezes faz parte da primeira geração de sua família a ingressar na faculdade. Ela trilhou carreira no marketing digital e conta como fundou uma edtech para tornar esse mercado mais diverso.
Fabrício Moura cursou direito para trabalhar em uma multinacional, encarou um burnout, se reinventou como designer gráfico e, numa nova guinada, largou o emprego para desbravar o planeta com o blog Vou na Janela, há nove anos no ar.
Amizade, jornalismo e futebol: Arnaldo Ribeiro fala ao Draft sobre sua carreira, a parceria com Eduardo Tironi no YouTube e a relação com os torcedores e com as marcas (inclusive o site de apostas que patrocina o seu canal).