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Karen Kanaan, sócia da École 42: “No fundo, o que eu faço não é falar sobre linguagem de programação, e sim sobre códigos humanos”

Marina Audi / 16 nov 2023
Karen Kanaan, sócia diretora da École 42 São Paulo.
Marina Audi - 16 nov 2023
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Karen Kanaan costuma dizer brincando que já teve várias encarnações profissionais: publicitária; captadora de patrocínios para Tony Kanaan, seu irmão piloto de automobilismo; empreendedora de startup, a Baby&Me (sobre a qual falamos aqui), e fundadora de ONG.

Hoje, aos 45 anos, além de ser mãe de João e Maya, ela é sócia diretora da 42 São Paulo, escola de formação em programação e engenharia de software para pessoas a partir de 18 anos. A 42 é diferentona: totalmente gratuita e possui uma metodologia exclusiva que aposta na colaboração entre alunas e alunos (ali chamados de cadetes), trabalho em equipe, sem professores ou aulas.

A 42 é uma iniciativa do francês Xavier Niel que pretendia transformar seu país numa potência digital e suprir a necessidade de profissionais para a área. Hoje, é uma organização global, que já formou 37 mil pessoas em 50 campi pelo mundo, em 29 países. No Brasil, ela está presente também no Rio

A área da educação é um tema não só do interesse profissional de Karen. Perpassa também experiências e pessoas que a marcaram. Talvez por isso, ela fale tão apaixonadamente sobre a 42 e as pessoas com quem convive lá. A diversidade não se atém ao discurso: 40% dos(as) cadetes vêm de situações de vulnerabilidade; mais de 40% são pretos e pardos; 30% se declaram neurodivergentes; e 70% não programavam antes.

A seleção da 42 é longa, nela são testadas resiliência, garra, vontade de aprender… Há jogos de memória, lógica e os candidatos precisam encontrar soluções para problemas trabalhando junto com outros concorrentes. Depois, da fase gamificada de inscrição, vem a “piscina”, uma imersão de 26 dias na metodologia, para definir os cadetes que permanecerão.

Karen agora quer trazer para o país uma escola com perfil parecido ao da 42, mas com foco em adolescentes. Ela procura financiadores para montar aqui a Tumo, instituição de tecnologia da Armênia, também gratuita, que atende estudantes de 12 a 18 anos. Por aqui, ela seria uma opção para o contraturno escolar.

O projeto da Tumo junta a aprendizagem autônoma, projetos e workshops, passando por 14 habilidades, entre elas animação, desenvolvimento de games, música e robótica. A escola tem atualmente 20 mil alunos na Armênia, além de Paris, Berlim, Moscou e outras cidades. E ainda leva os chamados Tumo Boxes, unidades montadas em comunidades, para atender os adolescentes perto de onde moram.

Leia a seguir os melhores momentos do papo que Karen Kanaan teve com o Draft.

 

Você é a filha caçula de uma família libanesa. Pode contar sobre seu ambiente familiar? Como foi o começo da sua vida e para que direção você imaginou que iria?
A família de meu pai veio do Líbano. E como todo bom libanês, eles devem casar-se com uma libanesa. Mas a minha mãe é baiana, apesar de ser filha de libanês. Tenho um irmão mais velho [Tony Kanaan, conhecido como TK na Fórmula IndyCar], que é piloto de automobilismo e corre por aí ainda.  

Eu vivia numa família de classe média, meu pai trabalhava como motorista. No final, ele virou presidente de uma empresa que se chama hoje TNT Brasil. Ele saiu de lá para montar a própria transportadora, a Lokam, que patrocinava meu irmão no kart. 

Eu estudava e o Tony corria. Só que meu pai faleceu quando eu tinha 10 e o Tony, 13 anos. Minha mãe não sabia fazer muita coisa e teve de aprender. Continuei estudando onde eu estudava até que o dinheiro acabou, porque foi tudo para o kart. 

Aí, minha mãe ficou uma madrugada inteira em uma fila de escola pública e passei a frequentar um colégio estadual até o fim do Ensino Médio. No último ano, por exemplo, havia só seis pessoas na sala.

A minha trajetória acadêmica escolar foi de falta de pertencimento, não tinha muitos amigos, não me encaixava… Ia e voltava em silêncio. É como se eu tivesse pulado uma etapa 

Consegui bolsa num cursinho e o que as pessoas reviam eu via pela primeira vez. Eu pensava: “Não sei em que faculdade vou passar. Vou estudar e não vou passar. Ou eu vou passar e não vou poder pagar…” Eu não tinha perspectiva. Meu irmão tinha feito um teste, estava morando fora, mas eu tinha muita insegurança do que seria o meu futuro.

Ao mesmo tempo, sempre tive uma veia artística para desenho, pintura e escrita… e tinha uma vontade muito grande de fazer as minhas coisas, de trabalhar, me virar.

Aos 14, fui a uma loja de biquíni, disse que eu tinha 16 anos e comecei a trabalhar. Quando o dono pegou meu documento [e se deu conta], eu já tinha vendido bastante, então pude ficar na loja como extra e consegui viajar para a Bahia para ver minha avó.

Eu sempre me questionei muito sobre educação: “Será que tem de ser assim como eu passei? Será que você precisa ser resumida a uma nota? Precisa ser escasso? Você precisa ter medo de não saber, de levantar a mão e perguntar… ter medo de errar?”

A minha vivência foi de um aprendizado pautado no medo e essa questão ficou ali on hold.

Essas lembranças da época da escola voltaram a partir do momento que você entrou em contato com a 42?
Não. Voltaram quando eu tive meu filho e estava na Endeavor. 

Cursei Anhembi Morumbi, que focava em publicidade e daí entrei no mundo de agências. Meu irmão tinha uns contatos e conseguiu um estágio para mim. Do estágio eu consegui um trabalho e fiquei dois anos no Grupo ABC, do Nizan Guanaes.

Daí recebi uma proposta para trabalhar na McCann no Brasil. E de lá fui para a McCann do Chile – aí o mundo se abriu

Em 2002, já fazia seis anos que não via o Tony, quando ele me perguntou: “Você não quer vir fazer um curso de inglês aqui? Agora eu estou bem”

Tirei uma licença de três meses e o plano era voltar. Só que não voltei. Fiquei dois anos trabalhando dentro da equipe do Tony. Eu via patrocínio pessoal – patrocínio grande, você não pode ver –, ajudava na parte de assessoria de comunicação.

Mas eu não me via nessa vida de “irmã de piloto”. Então, me juntei com dois cearenses e criei uma ONG lá, chamada Brazilian Mission. Apoiávamos projetos autossustentáveis no interior do Ceará, ficamos quatro anos nesse projeto

Quando cheguei de volta aqui, em 2006, fui trabalhar na MPM Propaganda, mas fiquei um ano só, até receber a proposta da Endeavor.

Naquela época, não era comum pessoas de agência irem para o mercado de empreendedorismo, ainda não era charmoso o suficiente…
Eu já não estava feliz na MPM, queria voltar para o terceiro setor. Eu tinha ficado muito tempo fora do país, não conhecia mais ninguém fora da publicidade, então percebi que tinha de refazer minha rede, conhecer gente. 

Um de meus clientes na MPM, Romeo Busarello, diretor da Tecnisa, tinha criado um curso na ESPM de gestão do conhecimento e decidi fazê-lo. Em uma das cervejas depois da aula, ele falou: “Karen, sinto que você está infeliz me atendendo”

Pensei que seria demitida no dia seguinte, mas disse a ele: “Verdade. Eu não sou mais uma pessoa de publicidade”. Ele falou de um amigo, Marcelo Nakagawa, que procurava uma diretora para uma ONG e perguntou se podia me indicar. Eu disse que sim

Comecei um processo de seleção na Endeavor, mas o Paulo Veras deixou bem claro que o meu perfil não era o que eles procuravam – queriam uma HP 12C [calculadora financeira], alguém do Insper ou Ibmec, mais de exatas.

Eu brinco que ele cuspiu para cima e me engoliu, porque fiquei seis anos lá. Eu me lembro de fazer uma série de entrevistas. A última foi com o Beto Sicupira, que até então, pra mim, era o cara da Ambev. Ele me fez uma série de perguntas e terminou assim:

– Você acha que é a pessoa certa pra Endeavor?
– Você que tem de me dizer isso, Beto. Já entendi que sou uma pessoa muito diferente do perfil.
– Hoje, a Endeavor precisa mais de will [vontade] do que de skill [habilidade]. Eu acho que sim, você pode dar certo. Pode ir em frente, diga que você está é contratada. 

Nunca mais esqueci dessa frase, inclusive eu escrevi um capítulo do livro Rotina plena e presente sobre isso.

A Endeavor foi um grande divisor de águas, o lugar que proporcionou eu me conhecer numa nova versão e num outro momento de vida, conhecer pessoas que me lembravam o quanto era bom estar viva 

Eu vivia uma agenda positiva, falava-se de sonho. Antes eu não tinha isso, Não existia perguntar: “O que você vai fazer agora? Qual é o seu desejo?” Eu não tinha muito tempo; eu tinha de botar dinheiro em casa.

Por que saiu da Endeavor para empreender?
A Endeavor foi um encontro de valores, pessoas e com uma parte minha que eu tinha perdido. E eu tive o meu filho João ali. Saí de licença e voltei grávida da minha segunda filha, a Maya. 

Decidi sair de vez, ainda grávida, porque eu já tinha batido no teto e, se eu ficasse, seria muito pesado para a organização.

Nesse momento, pensei: qual seria o meu próximo passo? O que eu queria para as crianças? O que eu não gostaria que se repetisse nelas da minha história e trajetória? 

Na época, encontrei a Carol [Ana Carolina Vaz], uma amiga empreendedora, que tinha uma empresa de cuidados para pets, a Dog’s Care. Um dos produtos lá eram tapetinhos higiênicos absorventes para cachorros.

Ela me ligou, disse que tinha perdido a Cobasi e estava desesperada. Eu tentei acalmá-la e fui me reunir com ela. Nossa conversa foi meio assim:

– Vi um post no Facebook de uma mãe que usou um tapetinho de cachorro para desfraldar o filho. Daqui a pouco a Maya nasce e eu terei de desfraldar o João…
– Você não tem ideia do tamanho do mercado, Ka…
– Carol, você devia usar sua máquina para fazer um tapetinho white label.
– Não tenho braço pra isso!
– Eu tenho. Bora empreender?

Isso aconteceu três semanas antes de eu ter minha segunda filha. Foi assim que começou a Baby&Me, que ficou três anos viva e foi maravilhoso. 

Fomos aceleradas pelo Google, conseguimos investimento – mas a Carol recebeu aporte na Dog’s Care, eu fiquei sozinha e não consegui tocar. Descobri um monte de faltas e falhas que eu não assumia possuir para tocar um negócio, então foi um “MBA de soft e hard skills” 

Decidi fechar [a Baby&Me] em outubro de 2018, porque tinha criado a startup para ser feliz, ter a Carol como sócia, para ficar com os meus filhos, ser uma extensão de mim e para ganhar dinheiro. Não estava acontecendo nada disso.

Imagino que você viu, na época de Endeavor, pessoas passarem por momentos parecidos com o que você passou na sua empresa. Viver isso foi diferente?
Quando saí da Endeavor, eu tinha uma cobrança muito grande de fazer certo, direito, naquela dinâmica de Demo Day, startup unicórnio, captar investimento… E também daquela coisa de “go big or go home”. 

Muita coisa caiu por terra quando me dei conta: “Que pira isso, que cobrança, que peso”. 

Na 42 – por mais que seja non-profit, é gerida como um for-profit, a diferença é que a gente não distribui lucro –, temos a intenção de não carregar ecos, nem sotaques daquilo que já não serviu 

Às vezes, eu volto em muitos buracos, Gui e Lobão também. Estamos sempre ajudando um ao outro a enxergar que a gente não precisa cair. O Lobão não precisa cair no lugar da Midea Carrier e nem da Whirlpool; o Gui não precisa cair no da Monashees; e não preciso cair no de agência, nem de startup, porque a gente está construindo uma coisa nova. 

E não é algo que você joga fora, não é abandonar a tradição; é evoluir com a tradição, é entender que o teu repertório evolui.

Como você se tornou sócia de Guilherme Décourt na 42?
Quando a gente fechou a startup, um empreendedor Endeavor me chamou para fazer uma consultoria e a Fundação Estudar, também. Nesse segundo momento de transição, a Natasha Hazan, uma amiga com quem eu tinha trabalhado na Endeavor, me ligou para saber como eu estava. 

Ela me falou de um amigo, que era sócio da Monashees, e estava mudando de vida, trocando o corporativo pelo social; a grana pelo impacto – era o Guilherme. Natasha sugeriu que eu falasse com ele

O Gui já tinha firmado contrato com a 42, queria trazer essa escola com valores de excelência, inclusão para pessoas que não têm condições. À medida que ele foi falando, eu me vi naquele lugar que eu já tinha vivido antes.

Pensei que ali eu teria algo mais a aportar – tecnologia eu teria de aprender, mas captação, comunidade, rede, eu [já] tinha. E em especial, educação era mais visceral para mim.

Quando a gente ouve você falar sobre a sua vida na publicidade e ao te ouvir falar hoje sobre a 42 São Paulo, fica-se com a impressão de que você se tornou uma educadora. Concorda? E por que diz que “vive num eclipse profissional”?
No eclipse há duas grandes forças. No meu eclipse tem quem eu sou como profissional e como pessoa, porque não consigo dividir, separar. 

O que eu escolho para fazer precisa ter um sentido para mim, é muito sobre não ser duas pessoas, uma em cada lugar. Não consigo bater a porta da minha casa e dizer: “Agora, não falo mais sobre o que eu faço. Agora eu vou viver”. 

Não! Tem de ser uma extensão do que eu acredito, principalmente para os meus filhos – que têm 9 e 8 anos. Eu os levo para a 42, eles veem ali o que é tecnologia, o que é não-binário, o que é transgênero.

Um dia, em uma fala de Luciana, que é cega, com o Leandro, que é surdo, meu filho perguntou: por que eu o tinha levado ali? Respondi: “Porque você me escolheu para te mostrar o mundo e essa é uma parte do mundo da mamãe”

O ponto de educadora… Eu não sei se me considero assim. Eu me considero uma pessoa que está sempre no educar-se. 

Olho para os meus filhos e penso que tem muitas coisas na minha educação que eu não quero repetir. E como faço para educar diferente? Eu preciso me reeducar, procurar uma terapeuta para minha criança, para depois eu cuidar deles.

Acho que tem uma parte da 42 que ressignificou a forma de eu aprender. Nunca tinha ouvido falar em aprender a aprender. Para mim tinha o jeito: “Você aprende desse jeito. Esse é o conteúdo, esse é o horário, essa é a forma”. E parte do meu comportamento rebelde de jovem que não queria aprender é porque não fazia sentido estudar 5 mil coisas que não ia usar.

Hoje, sabe-se que cada um tem o seu jeito de aprender, um ritmo, a sua forma. Não tem uma fórmula. Existe para cada qual uma equação. 

Na 42, você vê que as pessoas aprendem tecnologia passando por um aprendizado pessoal. Ninguém aprende nada ali sem antes aprender os próprios códigos. As pessoas, que pensavam que não poderiam estar ali, aprendem, hoje estão no mercado com a primeira carteira assinada

É uma convivência com o universo e uma agenda muito positiva sobre pertencimento, comunidade, colaboração, fazer junto e não fazer por cima do outro… É um mundo que a gente quer construir… Posso chamar de bolha, porque de fato é uma bolha.

Eu me encontrei muito ali por essa questão de educação, numa filosofia de como viver. Por exemplo, semana passada, um cadete que tem bipolaridade veio falar comigo sobre estar sempre procurando o bem-estar. Eu disse a ele que saúde mental é sobre saber estar mal e saber estar bem. 

E tudo bem se você está mal. Conseguir suportar esse lugar de estar mal e estar bem é saúde mental. Temos alguns cadetes que têm acompanhamento clínico e a 42 é um palco que me ensina muito sobre como conviver nessa comum unidade, na qual todo mundo é muito diferente.

O que você precisou disruptar em si mesma para viver esse aprender a aprender? Como você disse antes, a sua formação foi convencional. O que você teve de quebrar em si mesma e o que você manteve da mentalidade anterior?
Uma árvore não nasce árvore, ela se constrói e se faz árvore. Quando pensei que teria uma escola de tecnologia, a primeira coisa foi: eu não sei falar francês, eu não sei tecnologia, não sei ‘codar’ uma linha… 

Fui para o que me faltava e não para o que me sobrava. Entrei numa pira achando que não ia rolar. O Guilherme cortou essa ansiedade e conversamos bastante.

No fundo, o que eu faço na 42 não é falar sobre os códigos de linguagem de programação, mas sim sobre os códigos humanos. Esse é o meu papel de força ali, mas teve um ajuste até eu entender que eu não precisava codar em C. O que eu precisava era falar do ser

Abandonar todas as coisas que me limitavam começou na Baby&Me, na humildade de olhar e falar: “OK, fechei esse capítulo. O que eu aprendi, o que eu construí?”, ao invés de olhar o que me faltou: “O que eu não fiz, o que eu não contratei, o que eu não deleguei?” Eu entrei na 42 já com um pouco mais de maturidade. 

Eu acredito muito no impacto. Acho que a educação precisa mudar. Temos possibilidade de fazer um advocacy muito forte para mudar o cenário em 10 ou 20 anos – gosto de olhar no longo prazo, que é uma série de pequenos prazos.

Fizemos isso na Endeavor – não existia mentoria, investimento, investidor, grupo de anjos, não tinha a palavra empreendedor no dicionário, nada disso! E a gente conseguiu transformar – olhe o que é a Endeavor hoje.

Tenho certeza que a 42 vai trazer uma grande contribuição para o mercado, para o sistema de tech, diluindo estereótipos – e isso me deixa muito feliz 

Olhar para uma mulher trans, um homem trans, um menino da perifa que estão na 42 hoje e ver que adquirem um conhecimento que liberta, têm uma rede de empregabilidade e nunca mais ficarão desempregados… e mais do que isso, têm a dignidade de volta, a perspectiva de vida… A oportunidade é incrível.

Tenho um olhar muito vivo sobre o que a gente pode construir e o que a gente já está construindo. Que seja regado a utopia, a muito otimismo – que eu sempre tive –, beleza!

“Meu pai morreu, mas o que eu posso aprender? Não temos dinheiro, mas onde eu posso trabalhar? Não tem isso, mas o que eu posso fazer?” O problema não está na falta, está no excesso. Com a falta, você faz.

A metodologia da 42 tem muitas peculiaridades. Como foi o seu processo de se familiarizar com ela? Você chegou a participar de uma “piscina” [imersão de 26 dias pela qual passam os candidatos]?
Eu não vivi uma piscina como um pisciner, mas vivi piscinas como spy e como time. 

Quando fomos para a França para conhecer o que era uma piscina, ficamos uma semana observando o dia a dia, que é um pouco diferente daqui. O Guilherme fez a piscina uma semana, eu não. 

Deve ter uma grande diferença de viver o método e de assistir ao método. Posso dizer o que eu vi: um chinês com uma árabe, que dizia não saber ligar o computador. Ele mostrou a ela. Fui observar outro grupo, dali a pouco estava ela explicando para outra pessoa o que o chinês tinha explicado para ela. 

É desse jeito que acontece… Não é que a gente duvidava, mas a gente se questionava como acontece se há um gap de conhecimento? A pessoa não sabe nada, como vai aprender se não tem uma pessoa que diz a ela o que tem de ser feito? 

Nessa ânsia de ver o que acontecia, antes de vivermos aqui, fomos olhar lá fora na França e na Holanda… A gente foi na Codam, em Amsterdã, que é superlegal também. E quando fizemos aqui foi exatamente dessa forma. 

Após as transformações vividas durante a pandemia de Covid-19, ficou uma sensação de que todos os desenvolvedores se tornariam nômades digitais e trabalhariam remotamente para empresas em fusos horários completamente diferentes dos seus. Sob essa perspectiva, parece contraintuitivo ter uma escola de tecnologia que trabalha uma metodologia presencial e a colaboração entre devs como base fundamental do ensino. O que você pensa sobre isso?
Depois da pandemia, muitas pessoas nos perguntaram por que não seguíamos híbridos, se vimos que funciona?

Funciona, você consegue se relacionar, namorar ou manter um casamento à distância… Por um tempo. Ainda assim, ele é muito diferente do presencial. 

Funciona, os(as) cadetes progridem do mesmo jeito, mas não na mesma velocidade! Principalmente as pessoas que têm um gap muito grande de conhecimento e de vida social. Existe um pré-conceito delas de não aprender o que está sendo visto ali. 

O presencial é muito importante e fundamental nesse momento de se educar e de educar-se sobre aquilo, porque a pessoa vai partir basicamente do zero e vai colocar a mão na massa. Ela precisa do outro. 

Por essência, o ser humano precisa do outro. Quanto mais você discorda de mim, mais eu lembro quem eu sou

Acho muito difícil a gente ter uma vida virtual. Os devices estão ficando cada vez menores e a gente se olha ainda através da tecnologia. Primeiro, era um computador grande, veio o notebook, depois o celular, agora é um óculos… daqui a pouco será só a mão. 

Eu não sei aonde isso vai dar ainda, mas o trabalhar part-time remoto e part-time presencial… eu acho que o segredo está nesse equilíbrio de você é viver um pouco aqui, um pouco lá.

É maravilhoso ter a liberdade de fazer este call com você aqui [pelo celular, dentro do carro estacionado], sem precisar estar no escritório para dar o exemplo de que eu fui, de que cumpro o esquema 9 às 5. 

Porém, na parte do aprendizado, quando a gente fala de você aprender a aprender colaborando em comunidade, trabalhando um pertencimento, principalmente de um lugar que você vem de não saber, com cultura de não poder errar, não dizer que não sabe… A presença é importante

No basecamp, que é online, a gente observava o seguinte: alguém fazia uma pergunta, se em 10 minutos não tivesse resposta, a pessoa apagava a pergunta, porque achava que não tinha feito um bom questionamento. Rolava um pensamento do tipo: “Vou procurar outra pessoa… Não, nem vou procurar. Quer saber? Vou desistir”. Tem esse comportamento no virtual.

A gente tem 30% dos alunos e alunas autodeclarados neurodivergentes – com algum nível de TDAH, autismo – e no basecamp, eles estavam quase o tempo inteiro no safe space do Discord, um espaço seguro. Porque a pessoa achava que o tom que a outra pessoa “falou” estava “torto”…

A vida no virtual tem seus momentos e doses. Não é que não deva acontecer ou que não role trabalhar ali, mas acho que tem seus pesos e medidas.

Como as suas experiências mais recentes como fundadora de uma startup e de uma ONG impactaram sua maneira de mentorar pessoas? Qual é o seu estilo de mentora?
Sobre meu estilo de mentorar, você vai ter que perguntar para as mentoradas (risos). Hoje, eu mentoro muito na B2Mamy, uma comunidade de mães, faço parte do conselho da SCOOTO, um serviço de SAC diferente que só emprega mulheres e tem uma forma bastante humana de trabalhar; e do Voador Brasil, que é um camping hotel.

Eu senti muita diferença e um impacto muito grande… fiquei oito anos no conselho da Artemisia. Quando entrei lá ainda estava na Endeavor e eu tinha uma pegada muito da exigência, do olhar pouco empático, do “tem de acontecer” focado em resultado, esforço dá resultados, da meritocracia. 

De repente, isso se diluiu e hoje eu tenho um olhar mais para o tamanho do negócio, para a cabeça do dono. Tento entender, antes de qualquer coisa: o que você quer para sua vida? Este é o teu sonho, o quanto isso faz sentido para você? Tenho um olhar muito mais amoroso, pessoal e conectado com a pessoa

Eu saí do lugar de olhar para o negócio e fui olhar para o empreendedor ou empreendedora, junto com o que ele quer fazer, com o que ele quer produzir, com o que faz sentido naquele momento de vida. Dentro da B2Mamy mesmo, já desconstruímos vários negócios que estavam para ser construídos; joint ventures que estavam para ser feitas. 

O papel do mentor nunca é tomar uma decisão ou sugerir, é só provocar – e estou aprendendo a fazer mais perguntas. É como você está presente só ouvindo, sem pensar no que vai perguntar a seguir, ou o que tem a responder… Não, só escute, para ter certeza de que você conseguiu ouvir mesmo.

Acho que teve uma mudança na forma de mentorar relacionada a escuta ativa, empatia, sobre o interesse genuíno. Menos [focada] no negócio a princípio, e mais no empreendedor e na empreendedora.

Imagino que isso não significa que você não olhe elementos do modelo de negócio em si…
Exato. A gente vai olhar para o negócio, mas, primeiro, vamos olhar para a sua estrutura. Vamos entender como você está. Porque o negócio é você. 

Quanto menor é o negócio, mais ele é uma “eupresa”. Então, vamos entender primeiro as estruturas, o que você quer? Para depois você chegar até aqui, porque senão vai ser só um plano. Vamos olhar para o seu sonho, vamos olhar para você. 

Não é excludente, mas a ordenação ficou muito mais forte e profunda em relação à pessoa. 

Você se formou como pessoa em um estilo tradicional e bem diferente do modelo que defende hoje. Você teve dificuldade de desapegar dessa faceta?
Eu tenho fama por romper tradições, por fazer diferente. Por sorte ou azar, sou filha de uma pessoa que se desmaterializou muito cedo. 

Meu pai virou mito e eu, também. Tinha o Tony, que já corria, mas a Kaka foi trabalhar com tal coisa. Agora, ela está mudando. Nossa, ela lutou pelo não sei o quê…

O que poderia ser algo que machucaria a tradição da família acabou sendo sempre um elogio e um impulso para mim

E eu sempre tive muita implicância com o padrão. Não gostava de vestir padrão, eu não gosto de fazer padrão. 

Por exemplo: chá de bebê. Eu não quero fazer. Em vez de pedir uma fralda, vou pedir que cada um conte uma história, que um dia eu possa contar para o João. Recebi 60 histórias, fiz um livro e virou o livro do João. 

Sempre quis fazer algo diferente, por isso a 42 para mim é tão incrível, porque ela é muito diferente em tudo, ela passa uma régua e rompe com tudo: o conceito de professor, tutor

Eu me encontro no navio pirata – consigo navegar por um lugar muito diferente. E não é descredenciar o outro. Não é demérito do outro. O professor é uma figura maravilhosa, ele não tem demérito. 

A questão não é ser melhor ou pior. Estou aqui, sou diferente, adoro ser diferente.

Virar a chave e entrar para a 42, que é sobre colaboração, afetou as suas relações familiares? Em especial considerando a vivência de seu irmão no competitivo mundo do automobilismo?
Muito legal você trazer isso, porque o valor do esporte nunca foi a competição. O Tony saiu de casa muito cedo e trabalhei com ele lá nos EUA por dois anos. Sempre foi muito mais no sentido da disciplina, da dedicação, da paixão pelo que se faz ali… da superação. 

Eu me lembro quando ele sofreu um acidente muito sério no Japão – a suspensão do carro perfurou a pélvis, ele quebrou quatro costelas, botou 17 pinos do braço. Fomos morar um mês na casa de um médico, em Indianápolis. 

Eu nunca tinha visto o meu irmão numa situação tão vulnerável, tão debilitado. Todos os dias, ele acordava às 4h45 da manhã e não falava uma palavra – ele ficou praticamente uns 20 dias sem conversar. Eu via lágrimas caindo e não podia perguntar se estava tudo bem, por que ele estava chorando, se queria conversar…?

Uma semana antes da corrida de Indianápolis, ele ainda em recuperação, e o cara falou: “Tem de entrar e sair do carro em 18 segundos, sem ajuda de ninguém”. Ele conseguiu, correu e chegou em terceiro lugar. 

A mensagem era não desistir, lutar, acreditar… mais do que competir.

Você se tornou investidora-anjo na Sinapse Finance em abril de 2022. Qual é essa história?
Quem dera se eu fosse uma investidora anjo e tivesse o potencial (risos). Foi uma reflexão minha do Gui e do Lobão sobre haver algum negócio que a gente gostaria de apoiar e de investir. 

O Gui conhece muito o Walter Cavalcante [cofundador e CEO da startup], falou sobre o negócio e me sugeriu participar. Fizemos três conversas e decidi fazer um investimento na empresa.

Eu já tinha investido um pouco na B2Mamy e na SCOOTO, investimentos e projetos bem menores e nunca tinha experimentado algo maior. Pensei que por estar dentro de comunidade, entre amigos, devia fazer esse investimento. E acredito muito no negócio. 

Foi um primeiro experimento de um investimento maior meu, que tem menos entrega minha como mentora e mais recursos financeiros. É algo que eu quero fazer muito mais 

Falo muito sobre isso com a Marília Rocca, que foi da Endeavor também e é minha mentora. Digo a ela que quero estar em mais conselhos. Quero conseguir participar mais com conhecimento sobre a área de pessoas, mediação e desenvolvimento.

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