Homem, branco, graduado na Escola de Engenharia Mauá (EEM), com MBA em Finanças pelo Ibmec e anos de experiência em uma gestora de investimentos, João Paulo Pacífico poderia ser o estereótipo do chamado “farialimer”.
No entanto, a expressão usada para se referir às pessoas endinheiradas que trabalham em empresas do mercado financeiro na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, definitivamente não descreve o perfil do fundador do Grupo Gaia, empresa que nasceu com o intuito de construir um mercado financeiro mais humano.
De cabelo na altura do ombro e vestido normalmente com camiseta, João está longe de ser o típico usuário dos coletinhos de náilon. É mais fácil vê-lo com uma peça vermelha com a logo do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que recebeu investimento na casa dos milhões através de uma operação desenvolvida pela Gaia.
João Pacífico, portanto, é exemplo de alguém que conseguiu sair de sua bolha. O resultado disso foi uma mudança de mentalidade que impactou não só sua vida pessoal, mas a profissional. Em 2020, após quase 11 anos da fundação do grupo, o empreendedor decidiu criar uma empresa exclusivamente focada em investimentos de impacto social, a Gaia Impacto.
Depois, em 2022, vendeu as operações voltadas para investimentos tradicionais (a Planeta) e começou a mudança mais radical na história da empresa: a transição do setor privado para o terceiro setor.
“O dinheiro da venda da Planeta foi destinado para a ONG que nós criamos e que, agora, está no processo de formalização”, diz João. Esse processo inclui diretrizes que refletem os valores e alicerces da Gaia:
“Esse instituto já foi fundado com uma governança legal que, por exemplo, define que, lá dentro, pelo menos 25% das posições de diretoria devem ser ocupadas por mulheres e 25%, por pessoas pretas e pardas”
Com a mudança, João vai passar de empresário para assalariado — ele não será mais “dono”, e, sim, diretor da ONG. Todo lucro será redirecionado para causas sociais. A meta é, em um período de três a cinco anos, conseguir investir 1 bilhão de reais por ano em empreitadas com esse perfil.
Trilhar essa jornada incomum no mercado financeiro tem as suas (várias) dificuldades, ainda mais quando se escolhe criticar abertamente um sistema que, nas palavras de João, é “viciado em dinheiro”.
O em breve ex-CEO do grupo, porém, não enxerga um caminho diferente deste para transformar o mundo em um lugar mais justo, com menos desigualdade e mais responsabilidade ambiental.
Em entrevista ao Draft, João Pacífico fala sobre seu processo de conscientização, explica como transita em um meio com uma cultura tão diferente da sua e comenta algumas das polêmicas que trava nas redes sociais, incluindo críticas ao neoliberalismo:
Você costuma contar que fez engenharia porque gostava de números, porém, mais tarde, percebeu que não queria atuar na área. Como você foi parar no mercado financeiro?
No começo do terceiro ano de faculdade, eu fui atrás de um estágio e atirei para todo e qualquer canto. O único lugar que me aceitou foi o mercado financeiro e foi assim que fui parar lá. Ou seja, não foi porque planejei, porque tinha esse foco…
Eu entrei no mercado porque consegui uma vaga de estágio e depois fui contratado. Zero glamour, entendeu? Mas 100 privilégios, né?
Lá fui eu, então, na [gestora de investimentos] Rio Bravo, uma empresa que estava começando. Eu era um jovem completamente cru, mas cercado de pessoas bastante articuladas, que estavam fazendo as coisas acontecerem. Isso me ajudou demais, trouxe bagagem e aprendi com profissionais muito inteligentes.
Depois, tive uma passagem rápida em um banco sul-africano e, na sequência, no Banco Matone. Até que veio a crise de 2008 e 2009. Naquele momento, senti vontade de empreender para fazer as coisas de uma forma que achava que tinha mais sentido.
Quando montei a Gaia, o objetivo era justamente criar uma empresa mais humana; só que, na época, eu ainda não olhava a questão do ativismo.
E quando você começou a sair da bolha do mercado financeiro?
Isso começou a acontecer quando entendi que daria para usar instrumentos do mercado de capitais para causar um impacto positivo, mas teria que fazer adaptações. Foi em um projeto da Vivenda [negócio de impacto com a missão de estruturar o mercado de reformas habitacionais nas periferias do Brasil].
Achei a proposta muito legal e comecei a tentar adaptar o instrumento para financiar casas na favela, mas deu muito trabalho porque a bolha do mercado financeiro funciona de uma forma que você só consegue trabalhar dentro dela
Para desenvolver projetos de habitação social, você depende de grandes empresas do setor imobiliário – e é difícil conseguir mobilizar muitas delas para negócios com aquele perfil.
Então, depois de ser impactado positivamente pelo trabalho da Vivenda, comecei outras conversas com agricultores no Sul da Bahia, especialmente uma ONG chamada Tabôa, e aí veio o MST, né? Que foi para explodir a bolha de vez! (risos)
De que forma essas novas experiências mudaram sua visão sobre o meio profissional do qual você veio?
Você começa a se questionar, a questionar como o sistema financeiro funciona e especialmente a questionar a quem o sistema financeiro serve. E você vai ver que ele serve só a um pequeno clubinho.
Quem está de fora fica completamente de fora, eventualmente sendo explorado para ajudar alguns poucos a acumularem mais riqueza.
Você começa a conversar com outras pessoas, a entender realidades diferentes da sua e, aí, as narrativas que predominam no mercado começam a cair por terra. Por exemplo, essas narrativas da meritocracia, do “self-made man”
Essa mudança vai interferindo em várias esferas, como na questão das minorias sociais.
Meu primeiro contato com o feminismo, por exemplo, foi quando me chamaram para participar de um workshop da Bloomberg só para homens e conduzido só por mulheres.
Aquilo abriu a minha cabeça! Olhei para questões que nunca tinha percebido antes, aprendi sobre vieses inconscientes…
Depois, com a ajuda de pessoas envolvidas em causas variadas, fui avançando em outros temas, como na questão racial, e trazendo isso para a Gaia. Hoje, ela é mais feminina do que masculina e mais negra do que branca.
Conseguimos fazer essa migração, mas é necessário passar por essa conscientização e ter ações afirmativas. Do contrário, você não muda nada.
O que é preciso para ampliar essa mudança para todo mercado financeiro? Como torná-lo mais humano?
Demitindo todo mundo e contratando outras pessoas. Estou brincando! (risos) Bem, mas a verdade é que o nível de consciência das pessoas lá é muito baixo.
O mercado financeiro é absolutamente materialista! Você vale o quanto você tem, é uma competição de egos, de individualismo e de acumulação — e isso está em todos os lugares desse mercado, inclusive na onda do ESG
Muitas pessoas que trabalham no meio foram perdendo os valores humanos, foram se distanciando da sua humanidade. Isso é muito forte! Elas passam a ter cada vez menos empatia por quem não é exatamente igual a elas. Não têm compaixão.
É um caminho de sofrimento e de exploração. Parece aqueles trotes de antigamente nas faculdades: o cara apanha, acha o ritual um absurdo, mas, no próximo ano, faz a mesma coisa com outro. No mercado financeiro, esse ciclo vai se retroalimentando.
Em algumas entrevistas, você comentou sobre o vício do mercado financeiro em dinheiro. Você acha que esse comportamento que acabou de descrever tem a ver com tal vício?
Total! Fui reparando nisso com o tempo, vendo que as pessoas são viciadas em dinheiro, nunca estão satisfeitas com o que têm.
Tem gente que possui um patrimônio “infinito”, que não dá nem para calcular. Daria para sustentar várias gerações e, mesmo assim, continuam na ânsia de fazer mais.
Então é um vício, né? Aquela pessoa que está consumindo algo, não quer parar e não percebe o quanto faz mal para si. Só que esse vício não afeta só a ela, acaba impactando o entorno, tirando de outras pessoas.
Porque, junto com o vício em dinheiro, vem o vício no poder e essa pessoa vai explorar outras, que vão explorar outras e por aí vai. Nesse processo, a humanidade vai se perdendo.
As pessoas deixam de se importar. Não estão nem aí. Estão envolvidas em uma das maiores fraudes da história corporativa, mas aparecem jogando tênis no fim de semana…
Estão quebrando empresas, demitindo pessoas, impactando o PIB do Brasil, mas não estão nem aí e definitivamente não estão quebradas financeiramente.
Lemann, Telles e Sicupira [Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, acionistas de referência da Americanas] continuam com uma fortuna que nós nunca vamos chegar nem perto na vida, e muita gente ainda aplaude o comportamento deles.
Na sua opinião, o que explica uma sociedade que aplaude esse comportamento?
Eu acho que uma explicação está no discurso da meritocracia. Ele é instigante, motiva! Alguém diz que, se você for lá, se esforçar, seguir os mesmos passos que fulano de tal, vai conseguir se tornar um bilionário. Só depende de você.
Caramba, que demais, né? Está aqui dentro toda força que preciso, se eu der duro, vou conseguir... Só que isso é uma grande mentira!
Se você faz parte dos 10% mais pobres do Brasil, a chance de você ou das futuras gerações chegarem, nem a ser bilionárias, mas [apenas] a ter a renda média do brasileiro, é muito baixa
Não estou dizendo que não faz bem sonhar, isso é importante. Mas o “chegar lá”, nesse lugar de sucesso criado, não é tão simples nem verdadeiramente acessível
Só que, para um grupo de pessoas, vale a pena ficar estimulando essa fantasia. A galera vai tentar, tentar e tentar, não vai conseguir, vai se frustrar… e o que esses coaches influenciadores vão falar? Que ela não tentou o suficiente, mas, se comprar o módulo dois do curso e se dedicar mais, vai conseguir.
E se não conseguir de novo, a pessoa pega um exemplo, que, na verdade, é uma exceção, para mostrar que a culpa é de quem fracassou. “Se fulano de tal conseguiu, por que você não consegue? A culpa é sua.”
Figuras como o trio da Americanas e livros como “Dobre seus lucros” são aplaudidos porque reproduzem algo que as pessoas querem ouvir, vendem um sonho e dão a impressão de ser um movimento empoderador — quando é o oposto de tudo isso
Na Gaia, nosso discurso é o contrário. Nós acreditamos que precisamos mudar as relações de poder, precisamos de um governo que, por exemplo, vai tributar mais os ricos.
Como vocês conseguem estabelecer parcerias de negócios levando em consideração que discursos como esse da reforma tributária não são exatamente defendidos pela maior parte do mercado financeiro?
Hoje em dia, não sou tão próximo das entidades financeiras tradicionais, só de uma ou outra pontualmente.
Se você olhar de um ponto de vista individualista, os meus discursos e os posicionamentos da Gaia são ruins para nós
Eu me posiciono com algo que vai prejudicar a Gaia e isso não é tão comum, mas faço porque não faz sentido ter uma Gaia com lucros exorbitantes e um concorrente nosso quebrando. Não vou ficar satisfeito com a desgraça alheia.
Isso me incomoda porque, na Gaia, entendemos a integração das coisas. A prosperidade que é só individual gera um impacto negativo no coletivo.
O mundo que nós queremos não é um mundo egoísta, onde fico olhando só para mim e o meu negócio, ignorando a desigualdade do entorno. Acho que quem tem mais precisa ajudar quem tem menos, não por superioridade, mas porque, de alguma forma, aquela pessoa está em uma situação de privilégio.
Lógico que é legal ter um apartamento bacana, fazer viagens, realizar o sonho de comprar algo. Nenhum problema nisso! Mas precisamos parar um pouco com essa mentalidade de só acumular, acumular e acumular
É entender que podemos nos impor alguns limites, chegar uma hora que consideramos a nossa situação ok.
Tem uma frase de um amigo da qual gosto muito: o suficiente é abundante. Aquela pessoa que está sempre querendo mais, está sempre na carência, está sempre faltando algo. Por mais que ela tenha muito mais do que o suficiente, ela não se sente suficiente.
Então, entender que o suficiente é abundante é um passo importante na evolução do mercado, da sociedade, do país.
Considerando que a lógica dos investimentos é completamente diferente nos projetos de impacto, quais métricas vocês costumam levar em conta?
No nosso entendimento, o que é muito importante entender é o perfil de cada operação. Às vezes, quando você quer padronizar coisas que são diferentes, o que acaba acontecendo são métricas maquiadas, acaba tendo muitas operações de greenwashing.
Pode soar meio louco, mas o que nós fazemos é buscar entender cada história por trás daquela operação. Qual é a história real ali?
Entendendo isso, entendemos o que faz sentido medir; chegamos à conclusão de que, em determinado caso, faz sentido medir o aumento de renda das famílias envolvidas no projeto da Tabôa, por exemplo.
Cada caso vai ser diferente, mensuramos cada um com algo diferente, obviamente sempre ligado ao ambiental e ao social. Para nós, isso é importante porque, do contrário, você vai pegar dados que não estão agregando.
Foi isso que motivou a venda da Planeta e a transformação atual do Grupo Gaia em ONG?
Sim, essa visão contribuiu bastante. Comecei o Grupo Gaia fazendo operações imobiliárias para captar recursos e emitir valores mobiliários para financiar grandes obras.
Depois, entramos no agronegócio. Naquela época, eu acreditava que o “agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”.
Quando colocamos um pé naquela operação da Vivenda para financiar casas na favela e, mais tarde, outro pé na agricultura familiar com o MST, entendi que o agro é danoso. Foi quando passei a me posicionar contra o agronegócio – e comecei a receber muitas críticas
Diante disso, separamos a Gaia em duas: Planeta, focada em investimentos tradicionais, e Gaia Impacto, nos investimentos de impacto.
Só que, pouco tempo depois, entendi que a Gaia deveria ser só investimento de impacto. Tomei a decisão de vender a Planeta para focar apenas na Impacto, direcionando todo o dinheiro da venda para a ONG. E aí demos sorte que uma super oportunidade de venda surgiu.
Hoje, temos uma atuação forte na parte de habitação de impacto, na parte agrícola e também estamos fortalecendo projetos ligados de alguma forma a geração de renda.
Quais são as perspectivas do Grupo Gaia para 2023?
Em 2023, queremos colecionar histórias para inspirar mais pessoas e empresas a migrar para esse mundo do impacto. Nosso objetivo a longo prazo é que a maioria dos investimentos financeiros seja de impacto social ou ambiental.
Talvez seja um sonho dourado que nunca iremos atingir, mas eu queria que houvesse mais investimento especulativo ou mesmo conservador em projetos de impacto
Para isso acontecer, o primeiro passo é mostrar que os investimentos de impacto funcionam, compartilhar histórias maravilhosas para, assim, irmos alcançando mais pessoas.
Queremos mostrar para os outros que esse caminho é possível, é necessário, é urgente. Na verdade, acho que é o único caminho que faz sentido no mundo dos investimentos.
Em algumas entrevistas, você comentou que o objetivo da ONG é conseguir – daqui a três ou cinco anos – investir 1 bilhão de reais por ano em projetos de impacto social. De que forma planeja alcançar essa meta?
Na Gaia, trabalhamos com o conceito bem forte de que nós não temos Waze, nós temos bússola. Com o Waze, você planeja exatamente aonde você vai estar daqui tantos minutos; com a bússola, não.
Com uma bússola em mãos, você sabe a direção, sabe que está indo pra lá, mas podemos mudar a direção e os caminhos que levam até o destino final. Pode ter uma montanha no meio, um rio e outras barreiras que nós vamos contornando, mas sempre mantendo a direção.
Então, quando falamos que queremos chegar a 1 bilhão de reais daqui cinco anos, é porque achamos que isso é absolutamente necessário para o investimento de impacto.
Os dois principais caminhos para chegarmos até lá são projetos voltados para a habitação e para a agricultura. Inclusive, estamos desenvolvendo agora um produto com a Artemisia que tem um potencial grande nesse sentido
Porém, entendemos que esses caminhos são direções de uma bússola, não uma previsão detalhada de um Waze. Se eu fizer esse planejamento no detalhe, sei que vou errar porque cada projeto tem características específicas e, me apegando aos detalhes, vamos acabar presos a algumas premissas.
Por isso, olhamos para a direção. E vamos trabalhando com base nesse foco, no dia a dia.
Nascida na periferia de Manaus, Rosângela Menezes faz parte da primeira geração de sua família a ingressar na faculdade. Ela trilhou carreira no marketing digital e conta como fundou uma edtech para tornar esse mercado mais diverso.
Marina Sierra Camargo levava baldes no porta-malas para coletar e compostar em casa o lixo dos colegas. Hoje, ela e Adriano Sgarbi tocam a Planta Feliz, que produz adubo a partir dos resíduos gerados por famílias e empresas.
Na inquietude de mudar o mundo, o empreendedor social Raphael Mayer decidiu fazer do seu MBA uma imersão presencial. Ele divide os conceitos que absorveu ao rodar quatro continentes e conhecer seus respectivos ecossistemas de impacto.