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João Souza, cofundador da FA.VELA: “Muitos empreendedores que trabalham com impacto não vão na ponta, nem sabem como funciona”

Luiza Vieira / 6 dez 2023
João Souza, cofundador e diretor de novos negócios e parcerias da FA.VELA.
Luiza Vieira - 6 dez 2023
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Um nerd da favela. É assim que João Souza, 43, se define. Nascido e criado no Morro das Pedras, aglomerado formado por sete vilas na região oeste de Belo Horizonte, ele é o quinto de oito irmãos — todos por parte de pai (um deles, de pai e mãe). 

Sua trajetória não é nada trivial. Em meio a trabalhos informais ao longo da infância e adolescência — vendedor de chupe-chupe, engraxate —, João, como ele mesmo diz, quis “botar a cara no sol, ter um pouco de brilho”. Fez o Ensino Médio técnico no Senai e cursou Comunicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda no Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) de 2005 a 2009. 

Até se encontrar profissionalmente, ele desempenhou diversas funções. Trabalhou com registro audiovisual de aulas em uma universidade, passou pelo Instituto de Metrologia e Qualidade do Estado de Minas Gerais (Ipem) e, ainda no governo mineiro, trabalhou com inovação, inclusão digital e desenvolvimento de programas de parcerias internacionais com um olhar territorial para o norte de Minas.

Em 2011, João teve uma epifania, juntou uma grana e resolveu realizar dois sonhos de uma vez: morar fora e fazer um mestrado. Sem saber ao certo, a escolha do curso — Mestrado em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo na Universidade de Coimbra — já apontava as velas do seu barco na direção do próximo destino.

Foi dessa experiência que, em 2014, ele, Tatiana Silva e Débora Silva fundaram a FA.VELA, junto com mais outros amigos e amigas na época. A organização da sociedade civil (OSC) funciona como uma aceleradora de negócios periféricos por meio de cursos de letramento digital e empreendedorismo que duram entre duas semanas e nove meses. 

Além disso, a ONG possui sete projetos, desde educação digital para jovens e oferta gratuita de ingressos para eventos culturais, até a entrega de cartões alimentação e distribuição de livros.

O objetivo? Mudar o ciclo de pobreza em Belo Horizonte, promovendo o desenvolvimento social, econômico e ambiental de grupos e territórios vulnerabilizados. E os números não negam: mais de 35 mil pessoas foram impactadas diretamente pelas ações da FA.VELA, dentre as quais 75% são negras e 62% mulheres e 8% possuem alguma deficiência.

Em 2019, o trio resolveu expandir sua atuação com o lançamento da Futuros Inclusivos, braço dedicado a apoiar empresas, governos e outras OSCs com consultorias e projetos customizados.

Além de atuar como diretor de novos negócios e parcerias da FA.VELA, João é fellow da Ashoka Global, palestrante e amante de motos. Em conversa com o Draft, ele conta a sua história e divide a sua visão sobre o empreendedorismo periférico no Brasil.

 

Antes de falar sobre a FA.VELA, conta um pouco quem foi o João quando mais jovem? E quem é o João hoje?
Eu sempre fui meio que um nerd de favela, não me enquadro em nenhum estereótipo. Não sei sambar e, para tristeza e desgraça do meu pai, também não sei jogar bola. Não canto rap, mas eu tenho dois irmãos que cantam — essa cota da família já está preenchida.

Sempre fui muito curioso, tanto que hoje, na vida adulta, eu tenho um vício que é Lego. Quando sobra alguma grana eu compro um Lego muito complexo, porque era uma coisa que eu queria quando moleque, mas minha mãe não tinha condições.

Como acontece com quase todos os jovens da periferia, comecei a trabalhar aos 10 anos para ajudar em casa, o chamado “arrimo de família”. Fiz entrega no sacolão, engraxei sapatos, várias coisas. Nessa idade também virei babá do meu irmão; preparava a mamadeira, trocava fralda; era algo que precisava ser feito

Eu estou há 43 anos trabalhando com impacto social e já tive todos os papéis: já fui beneficiário e hoje ajudo outras pessoas. 

Os dentes que eu tenho na minha boca, eu devo a duas ONGs: a primeira era uma creche; a segunda era uma organização social que levava estudantes de odontologia para ensinar a gente a fazer escovação e aplicar flúor.

Quando você cresce na favela e na periferia, nesse tecido social, existe uma perspectiva muito grande das pessoas ajudarem umas às outras. Minha mãe queria que os filhos estudassem, se formassem e saíssem da favela, mas acabei contrariando ela. Decidi ficar e contribuir de alguma forma com a comunidade onde cresci.

Em uma palestra TEDx de 2018, você comentou que “empreender é um ato político”. Como foi esse processo para você, o que te motivou a fundar a FA.VELA?
Tinha essa perspectiva de ter um incômodo, uma dor que eu queria resolver, mas também tinha uma questão vinculada à perspectiva de ter um lugar para mim; onde o que eu tinha estudado, o que eu acreditava e o que eu queria fazer, fizesse sentido naquele contexto.

A FA.VELA nasceu para mim, para Débora Silva e para Tati Silva, que são as outras duas fundadoras, como uma forma de fazer entregas formativas de acesso na ponta  seja no letramento empreendedor e tecnológico, seja na perspectiva de longevidade que a gente trabalha com a galera acima de 60 anos. Mas a FA.VELA também salvou a gente. 

Quando recebi o reconhecimento de empreendedor social da Ashoka e me tornei fellow, eu ainda tinha um pouco de preguiça desse olhar do empreendedor social, do empreendedorismo de impacto, porque eu achava que a galera ficava gastando muito tempo tentando “gourmetizar” um processo

Isso ainda acontece hoje, mas um pouco menos. Como essas questões de diversidade e ESG começaram a crescer e a dar dinheiro, as pessoas começaram a entender que tinha que dar voz para pessoas pretas, LGBT, para mulheres e pessoas que vêm dos territórios onde esses empreendedores estavam querendo fazer o tal impacto.

Ao longo dessa jornada como empreendedor, eu acabei descobrindo que isso sempre esteve em mim. O empreender está muito mais vinculado a um capitalizar o seu conhecimento e as coisas que você faz, do que realmente a um nome ou título.

Por exemplo: a gente tinha um programa de aceleração de pequenos negócios chamado Pipa [Programa de Intervenção Participativa e Aglomerado]. Na primeira edição, fizemos uma mobilização corpo a corpo mesmo. 

Quando a gente perguntava, “E aí, você é empreendedor(a)?”, a pessoa bugava. Agora, quando a gente perguntava “Você vende alguma coisa? Como é o seu corre?”, a pessoa respondia. Isso foi o pulo do gato. A partir daí, decidimos que o nosso diferencial ia ser a linguagem; usar uma comunicação inclusiva para ensinar temas complexos 

Isso virou um mantra aqui dentro [na FA.VELA]. A gente não quer que a pessoa saiba quais são as forças de hipóteses, a matriz SWOT. O que importa é se o cara que está vendendo cerveja no carnaval consegue fazer, rapidamente, uma análise de quanto ele consegue diminuir sua margem para vender mais barato pro cliente sem impactar seu lucro.

Temos uma preocupação muito forte com a mobilidade social, de aumentar a renda dentro do núcleo familiar. Muitos empreendedores que trabalham com impacto não vão na ponta, nem sabem como funciona.

A FA.VELA existe desde 2014 como uma organização da sociedade civil (OSC) e depois vocês abriram um novo braço, com a agência de consultoria Futuros Inclusivos. Qual foi o motivo da decisão? E como isso é divido hoje?
Tanto a parte de relação com o beneficiário — que é quem recebe nosso conteúdo de forma gratuita, acessando as nossas formações — quanto a captação de incentivo fiscal, doações e afins, são feitas via FA.VELA.

A Futuros Inclusivos foi criada em 2018 para começar a atender a demanda das empresas por palestras e cursos de formação interna, e também para desenhar e personalizar programas para as organizações sociais.

Sebrae, Fundação Renova, Fundo Baobá, governo britânico, são alguns clientes que a gente atendeu via Futuros Inclusivos, que é nosso braço de consultoria e possui outro CNPJ. 

A gente começou a entender que não fazia sentido ficar emitindo Nota Fiscal via uma organização social e criamos esse outro modelo de negócio. A FA.VELA é o cartão de visitas, o que dá mais visibilidade, mas quando alguém quer contratar uma consultoria a gente fala “conversa com a minha irmã ali”

Os pilares do negócio são os mesmos para as duas frentes. Primeiro: a gente é capaz de fazer? Não dá para vender fumaça, isso incomoda demais o time. Segundo: tem alguém que precisa do nosso serviço? 

Terceiro, e mais importante, que deixa a gente feliz no quinto dia útil: tem alguém disposto a financiar, seja pagando uma consultoria, seja fazendo investimento direto, seja por doação? Se sim, vamos executar, vamos colocar para rodar. 

Um estudo realizado em 2021 mostrou que as favelas têm um potencial de consumo de 167 bilhões de reais; algumas marcas, de fato, estão começando a olhar para isso. Você acha que o potencial do empreendedorismo periférico também já foi descoberto?
Eu tenho uma preocupação com isso, acho muito delicado. Se de um lado eu enxergo potencial, do outro acho que tem que ter um olhar de políticas públicas e de marcas interessadas em capacitar o território, a partir de uma perspectiva de valor compartilhado. 

Senão, do ponto de vista microeconômico, você mata o comércio local, porque essas grandes marcas vão lá apenas para vender, racham de ganhar dinheiro, enquanto a galera da favela que gera emprego lá dentro tem que fechar as portas porque não conseguem competir com o preço

Durante o mestrado, morei seis meses em Moçambique, e eles enfrentam um problema muito grave com lixões. Nos últimos anos, começou a rolar um empoderamento econômico bem moroso da população do país. 

Sabe o que a galera faz? Vai para África do Sul gastar dinheiro em dólar. Eles recebem em metical, moeda local e que não vale nada, e compram carro usado do Japão, da China. Aí você vê aquele tantão de SUV no meio das ruas e muito, muito [alimento] ultraprocessado… 

Quem tá feliz com isso? As empresas portuguesas que vendem e continuam colonizando a região de alguma forma através do consumo, e as empresas da África do Sul e de outros lugares que vão lá vender coisas embaladas. Enquanto isso, Moçambique, que é um território gigantesco e possui uma enorme área de terra, não consegue desenvolver sua agricultura; eles compram tomate da África do Sul. 

Trazendo isso pro Brasil, muitas instituições públicas de inovação e tecnologia, bem como grandes marcas, têm dinheiro sobrando e não sabem como e onde investir. Ao mesmo tempo, a favela está gritando por uma oportunidade

Tem que ter um encontro de vontade de forças e afins para poder fazer sentido. Não dá só para pensar na perspectiva de “olha, mais um mercado consumidor, vamos lá vender tênis”.

Na sua opinião, esse encontro de forças acontece hoje? Como você vê a relação entre governos, setor privado e sociedade civil organizada perante aos desafios sociais existentes? A FA.VELA já possui parcerias com órgãos públicos?
Ainda é muito tímido. Para mim, o caminho de pensar o verdadeiro impacto social e ambiental passa pelo diálogo — e a gente conversa pouco. 

A FA.VELA já tem algumas parcerias com o governo. A gente tem projetos via conselhos de direito, captando recursos de empresas para ações com idosos, crianças, adolescentes ou de cultura, via Lei Rouanet, por exemplo.

Também temos parcerias para operacionalizar políticas públicas. Temos um projeto com a prefeitura de Belo Horizonte chamado “Cê tá on”, de inclusão e letramento digital em favelas e periferias

Existe uma grande política de implantar o wi-fi nesses territórios, e eles precisavam de alguém que pudesse rodar formações e programas para incentivar as pessoas a usarem esses os telecentros, CRAS [Centro de Referência da Assistência Social], e outros espaços com computadores e equipamentos tecnológicos. 

João, numa chave mais pessoal: o que te dá combustível para seguir trabalhando com impacto social apesar de todas as dificuldades?
O que me move é meio que uma chama. Não gosto de chamar de propósito, porque acho que é muito pouco. 

Toda vez que eu encontro amigos que estudaram comigo e hoje seguem numa cadeira mais corporativa, com horário para começar e terminar, não me vejo muito nesse lugar.

Tenho essa necessidade de desafios — e trabalhar na FA.VELA todo dia é um baita desafio. Essa lógica de tirar de onde não tem e colocar onde não cabe me motiva muito 

Não tem nada mais legal do que encontrar uma pessoa que já passou por um curso de capacitação da ONG e ver que ela está despontando, está conseguindo manter seu negócio. É bom saber que você contribuiu de alguma forma para aquilo.

 

 

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