Poucas coisas soam tão velhas quanto “câmaras de comércio”, essas entidades que países estrangeiros mantêm aqui para auxiliar suas empresas a realizar negócios com companhias brasileiras. Mas existem exceções. Esse figurino “passadista” não combina, por exemplo, com a Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC), instalada em São Paulo desde 1974.
Com 82 funcionários, boa parte deles estudando o trade dos dois países, a câmara mapeia oportunidades, organiza seminários e congressos, monta missões exploratórias e ajuda a gerar negócios. A inteligência comercial se traduz também num site acima da média com “quick facts” sobre o business dos dois países, uma revista bimestral bilíngue e podcasts sobre temas como IoT, regulação de fintechs, gestão de compliance ambiental e mineração.
A CCBC tem duas diferenças cruciais para outras câmaras de comércio. A primeira é de filosofia: não existe uma matriz despachando ordens do Canadá. Sua razão de ser, claro, é auxiliar nos negócios bilaterais entre os dois países — mas com ênfase nesse bilateralismo. Empresas daqui e de lá têm as mesmas preferências no atendimento de suas demandas.
A segunda diferença tem a ver com a fonte de receita. Numa estratégia inusual (e que se provou um acerto), a CCBC mantém desde 1979 um Centro de Arbitragem e Mediação, que se debruça sobre disputas comerciais entre companhias brasileiras e estrangeiras. É essa unidade de negócios — e não os cerca de 200 associados — que sustenta a câmara de comércio.
Nos últimos anos, a CCBC colocou em marcha um movimento para turbinar a gestão comercial, incluindo um olhar mais atento para o ecossistema de startups. Em novembro, a Câmara será a “Casa do Canadá” (emulando o conceito das “embaixadas” olímpicas) durante a São Paulo Tech Week, promovendo pitches e encontros entre empreendedores.
Diretor de assuntos institucionais da CCBC há cinco anos, Paulo de Castro Reis está à frente desse reposicionamento (palavra que usa sem cerimônia). A seguir, ele fala sobre as oportunidades e desafios da relação comercial entre os dois países, o ecossistema canadense de inovação — e até sobre o título dos Toronto Raptors na NBA.
A CCBC surgiu com um modelo incomum para esse tipo de entidade. Por quê?
A CCBC está fazendo 46 anos. Cinco anos após sua fundação, houve essa ideia de montar um centro de arbitragem e mediação comercial, que foi o primeiro do Brasil. Desde então permanece como o centro mais reconhecido de arbitragem comercial de alto valor [do país]. Discutem-se ali questões societárias, compra e venda de empresas, negócios de infraestrutura.
O que a gente mais atende são disputas entre empresas do Brasil, mas também com outros países. Foi um projeto que cresceu e acabou sendo mais relevante do que a própria Câmara. Mais ou menos como ter um filho mais famoso que o pai
Há cinco anos, as pessoas que gerenciavam a instituição junto com o consulado canadense procuraram montar uma estratégia em que a gestão comercial da câmara tivesse relevância equivalente ao da arbitragem. Entrei para ajudar nesse reposicionamento. Como venho do mercado, não de ONGs, sei os obstáculos, sei “onde aperta o sapato”.
Como vem se dando esse reposicionamento?
No passado, as câmaras de comércio funcionavam como fonte de informação. Você ia lá e abria aquelas páginas amarelas com listagem de exportadores, mas hoje essas informações estão na palma da mão. E o problema é como filtrar esse universo de possibilidades. Quais os contatos realmente adequados ao meu produto, quem é de confiança… A gente agora precisa filtrar, validar as informações, fazer curadoria das oportunidades — e criar conexões.
Todas as câmaras de comércio estão buscando se reposicionar. Arriscaria dizer que a nossa fez isso de maneira mais incisiva, positivamente falando
A maioria trabalha pela relação bilateral sob a diretriz estratégica do país de origem. A CCBC, desde o começo, atuou como uma câmara realmente independente e bilateral, mantendo ligações muito fortes com governos, instituições e empresas canadenses.
Trabalhamos pelo benefício da relação, não temos de nos reportar a uma autoridade canadense. A nossa câmara talvez seja a mais neutra dentre as câmaras bilaterais e neutras.
A área que você comanda tem independência financeira, é sustentável?
O fato de a unidade de negócios ligada à arbitragem ser um modelo bem sucedido garante à câmara independência financeira. Nossa área em si não é sustentável, oferecemos muito mais do que arrecadamos, acabamos subsidiando uma série de coisas. Nos consideramos uma câmara de comércio que inspira outras câmaras. Não temos o desejo de ser a maior, queremos ser a melhor.
Como vocês avaliam o desempenho da Câmara de Comércio? Qual é a métrica?
A maneira mais fácil de mensurar o sucesso é observar o resultado dos negócios das empresas associadas. A que nunca exportou e agora está exportando, por exemplo. Também fazemos uma análise da diversificação da pauta de negócios. Um desafio que a gente enfrenta é que o Brasil não está no “top of mind” do exportador canadense, e vice-versa.
Alguma coisa já mudou. Os países começaram a se conhecer mais, o Canadá é o principal destino dos que vão estudar fora do Brasil, é um país simpático ao brasileiro, tanto por suas posições ideológicas como pela receptividade ao imigrante, pela qualidade de vida, pelas soluções tecnológicas que oferece. Há consenso de que o Canadá é um lugar legal, nosso desafio é mostrar que é legal também para fazer negócios.
Como é a estrutura da CCBC?
Ela tem uma estrutura grande, com quatro andares, um auditório próprio, 82 pessoas que trabalham diariamente aqui. Há um departamento que se dedica à inteligência comercial, faz estudos de mercado e de viabilidade de produtos, vai mapeando nichos e oportunidades bilaterais.
Fizemos um estudo abrangente da principal pauta de exportação brasileira que não vai para o Canadá e os principais produtos que o Canadá importa, mas não do Brasil. A ideia é identificar oportunidades, gerar um “awareness” e depois ajudar a fazer negócios no outro país. Esta semana mesmo [no fim de de setembro], uma missão nossa foi ao Canadá mostrar o café premium brasileiro.
O canadense não conhece o café brasileiro?
Identificamos que o canadense está entre os dez maiores consumidores per capita de café do mundo e privilegia qualidade ao preço, topa pagar mais caro por produtos diferenciados. Ao mesmo tempo, vimos que o café especial brasileiro não era reconhecido lá. Compravam o colombiano, o guatemalteco, o etíope, mas não viam o café do Brasil como premium. Então focamos em missões específicas do produto.
O primeiro desafio é convencer o exportador brasileiro a vender lá. O Canadá não está no radar. Preparamos apresentações, fizemos road shows no sul de Minas, no interior de São Paulo e no norte do Paraná, fomos falar sobre o Canadá para esses produtores.
Depois criamos provas técnicas para avaliar diferentes cafés, do jeito que se faz com vinho, para dar segurança ao comprador de lá. As missões são financiadas pelos participantes, o CCBC não é intermediário. Mas entramos com o know-how.
Quais são os setores que vocês mais trabalham na relação entre os países?
Alimentos e bebidas é forte. Este ano começamos a montar uma missão para divulgar o cacau premium da Bahia e do Pará.
Há também projetos ligados a smart cities: mobilidade urbana, IoT, segurança pública, gestão de resíduos sólidos. Temos levado prefeitos e autoridades ao Canadá para missões de atração de investimentos, e também para adquirir know how em tecnologias que possam ser implementadas aqui
Já levamos a prefeitura de São Paulo, a agência [de fomento] SP Negócios, o prefeito de Gramado (RS), governos da Bahia e de Minas… Isso é interessante, porque somos reconhecidos por entes governamentais ou privados do Brasil também por essa abrangência nacional. Agora mesmo estivemos em Rondônia, um estado que não estava no nosso radar.
Aqui, juntamos um modelo de negócios de visão ambiciosa com a possibilidade de colocar essa visão em prática. No Canadá, a ideia é a mesma. Começamos numa região e pouco a pouco ampliamos [a abrangência]. O escritório do Canadá é nosso, não se trata nem de um escritório homólogo. A ideia é dar apoio às pessoas que ajudamos a levar para lá, além de ser um ponto de apoio para fomentar negócios e identificar oportunidades entre os dois países.
A Câmara não se envolve com os principais produtos das pautas de exportação de Brasil e Canadá (minérios e commodities agrícolas). Pensando em diplomacia, vocês seriam o soft power?
Acho que a gente é mais do que soft. Sim, não entramos no commodity, fazemos uma diplomacia mais abrangente e diversificada no sentido de ampliar os pontos de contato entre os dois países. Fazemos um trabalho que conversa muito com a própria matriz de negócios canadenses, muito baseada na pequena e média empresa.
Creio que 80% das exportações canadenses estão ligadas às pequenas e médias empresas. A gente trabalha muito nesse universo. Estamos ampliando os pontos de contato de startups, fintechs, agritechs, healthtechs, e também na área de cultura, buscando promoção de oportunidades na indústria criativa entre os dois países.
Como vocês apoiam os empreendedores de startups?
Houve um evento aqui na câmara reunindo várias startups e alguém do iFood disse que a CCBC era a única câmara de comércio que tinha um trabalho estruturado para esse nicho.
Nesse reposicionamento, quisemos encarar o comércio exterior de forma mais abrangente do que a média. Falamos de exportação e importação, mas também de investimento, de transferência de tecnologia, de educação, de cultura. No final tudo é negócio, entram serviços, indústria criativa, comida, IoT, tecnologia, inovação, saúde.
Temos projetos interessantes, como o Connection Bureau, uma plataforma gratuita para aproximar os ecossistemas de inovação: startups, programadores, aceleradoras, investidores-anjo. Todo mundo se conecta, é quase um Tinder de empreendedores dos dois países
Na São Paulo Tech Week do ano passado, fizemos o São Paulo Elevator Pitch. As startups do Brasil selecionadas tinham 56 segundos para falar em inglês com as aceleradoras canadenses — só o tempo de subida do elevador do Farol Santander. Três empresas ganharam aceleração em Toronto, Montreal e Vancouver. Ano que vem vamos trazer startups canadenses para ser aceleradas no Brasil.
No Brasil, ouve-se falar de Waterloo como uma região propícia para startups. Como é o ambiente de inovação, hoje, no Canadá?
O Canadá tem se empenhado de montar um ecossistema de inovação muito forte com o objetivo de fazer dele o principal do mundo, ou ao menos o mais diferenciado. Há diferentes clusters pelo país com investimentos em todo o ecossistema. Além disso, a política de inclusão ligada à diversidade, ligada à imigração do país, é agente importante nesse processo.
Quando você tem em outro país um grupo de especialistas da melhor universidade, todos superqualificados, montando alguma coisa, por mais eficiente que seja, será menos inovador do que um grupo lá do Canadá — que tem indiano, árabe, latino, norte-americano…
Porque a solução a que esse grupo canadense chega seguramente vai ter um foco muito mais globalizável, vamos dizer assim, do que as soluções embarcadas dentro de uma cultura mais regionalizada. Montreal, que é o principal hub mundial de Inteligência Artificial do mundo hoje, não virou esse principal hub por acaso. Foi um ecossistema construído com a diversidade das pessoas que vivem lá, as universidades e os pólos de inovação.
A cannabis, esse mercado bilionário em que os canadenses têm se destacado, é um ponto de atração para os brasileiros?
Também é um ponto de interesse, temos alguns associados canadenses nesse segmento. Procuramos trabalhar junto com nossa comissão de inovação e saúde para destacar a importância dos projetos ligados ao uso medicinal da cannabis.
O canabidiol tem ação comprovadamente eficaz para epilepsia, glaucoma, alzheimer. A gente tem procurado por meio de eventos e seminários compartilhar um pouco desse entendimento. É uma coisa nova, e as pessoas têm um interesse natural sobre o tema
Querem saber se vale a pena e se é correto investir nisso. A nossa função aqui é compartilhar conhecimento para que em algum momento sejam viabilizados negócios.
O Canadá é governado por um primeiro-ministro carismático [Justin Trudeau, reeleito nesta semana], alinhado com questões contemporâneas, como equidade de gênero. Os Estados Unidos têm um presidente que vai no sentido oposto. Vocês exploram isso?
Explorar especificamente, não, mas a gente sente um reflexo. Aqueles empresários do Canadá ou do Brasil que estavam muito concentrados nos Estados Unidos começaram a prestar atenção em outros mercados.
O brasileiro que pensava nos Estados Unidos para estudar, imigrar, para fazer negócios, acho que essa situação fez com que ele se questionasse se não haveria outros destinos a priorizar. Nesse sentido o Canadá surgiu como boa opção: também está na América do Norte, tem cultura anglo-saxã europeia mais ou menos similar, com um posicionamento talvez mais próximo dos valores desses brasileiros que buscam algo diferente.
E o empresário canadense, que estava acomodado na negociação com os Estados Unidos, ao ver que a relação já não estava tão tranquila, já não fluía tão fácil como antigamente, começou a olhar para outros mercados. E nesse momento o mercado brasileiro, de quase 220 milhões de habitantes, acaba aparecendo como oportunidade interessante.
Recentemente, o governo brasileiro se viu pressionado internacionalmente por causa das queimadas na Amazônia. Como vocês trabalham, com seus associados, o tema do meio ambiente e as oportunidades geradas nesse segmento?
Tem dois pontos aí. A gente tem procurado identificar e trazer para o Brasil cases e boas práticas nesse segmento. Em setembro, para o principal encontro sobre mineração do Brasil, a Exposibram, trouxemos em parceria com o consulado canadense empresas do setor de clean tech. Falaram de controle de barragem, de manejo sustentável de mineração limpa e do projeto Women in Mining, de como ampliar a participação das mulheres nessa indústria.
A segunda coisa é informar aos canadenses a real situação das questões ambientais no Brasil. Para quem está distante, a impressão é que tudo fica dentro de uma mesma nuvem. Não podemos deixar que fique uma impressão equivocada, a ponto de restringir a vontade de fazer negócios com o Brasil. Assim, procuramos ampliar o espectro de informações para que eles façam a própria análise. Aqui, vemos visões diferentes da mesma notícia em vários canais de TV, mas lá eles veem um canal só.
Em junho, os Toronto Raptors se tornaram o primeiro time canadense da história a vencer a NBA, o maior campeonato de basquete do planeta. Qual foi o impacto no país?
Foi muito interessante por várias razões. Teve uma questão de orgulho nacional. Eu estava lá no dia e senti toda a energia positiva.
Foi algo que contagiou o país inteiro, equivalente à final da Copa do Mundo para os brasileiros. Só que os Raptors são o time de uma cidade, não era a seleção canadense que jogava. E, de repente, se tornaram o time do país
É um time duas vezes outsider: primeiro, por ser de fora dos Estados Unidos; segundo, por jamais ter brigado por título, nem aos playoffs chegava. A gente está tentando colocar isso como inspiração, é interessante saber como essa equipe outsider se estruturou, como foi possível fazer um projeto tão bem sucedido. É um exemplo inspirador de gestão, mais do que propriamente do esporte.
Usada no tratamento de doenças crônicas, a cannabis medicinal pode ser uma aliada contra problemas mais cotidianos. Saiba como a Humora quer multiplicar o potencial do canabidiol e ganhar o mercado brasileiro com uma solução de bem-estar.
A popularidade de uma marca no mercado doméstico não é certeza de sucesso internacional. Saiba como a Havaianas conseguiu saltar de oito para 130 países, segundo a visão de quem viveu essa história (que acaba de virar um livro).
Não existe um passo a passo para quem quer internacionalizar uma empresa, mas é possível aprender com a jornada de outros empreendedores. Rodrigo Bernardinelli, da Digibee, conta o que descobriu ao levar sua startup para os EUA.