Quando tinha 1 ano de idade, ao ensaiar meus primeiros passos, comecei a apresentar dificuldades com alguns movimentos. Meus pais me levaram para fazer exames e descartar a pior possibilidade, uma rara doença genética degenerativa.
Mas nossa expectativa não se confirmou. O resultado apontou para a Atrofia Muscular Espinhal, AME, para os mais íntimos. Uma condição rara em que o corpo não produz uma proteína que protege o neurônio motor, fazendo-o entrar em apoptose e, consequentemente, levando à perda progressiva dos movimentos do corpo.
Existem quatro tipos de AME, que vai da 1 (a mais grave) até a 4 (a mais branda). A diferença é basicamente a idade em que ela apresenta os sintomas e que impacta na expectativa de vida.
Como abri o quadro muito jovem, pensaram ser a implacável variante 1, mas, felizmente, era a 2, que me permitiu estar aqui contando minha história.
Mesmo diante desse cenário, meus pais resolveram adotar uma filosofia de vida que sigo até hoje, em que a doença não é o foco.
“Viver com a doença, não para a doença”. Isto é, entender o quadro e respeitá-lo, mas não deixar de viver, passear, viajar, ou jogar, que são coisas tão importantes como ir à fisioterapia e ao médico.
Naquela época, meados de 2006, não existia nenhum tratamento para a AME. Então, a previsão médica era de que eu não passasse dos 2 anos de idade
Meus pais, obviamente, nunca aceitaram esse prognóstico, não ficaram parados nenhum minuto e foram buscar nos mais diversos lugares (alguns até “esquisitos”) alguma terapia que pudesse estabilizar minha saúde. A rotina também incluía muita fisioterapia com vários profissionais maravilhosos.
Em uma dessas buscas, nos deparamos com a Antroposofia, corrente austríaca de pensamentos, medicina e pedagogia criados pelo filósofo Rudolf Steiner no início do século XX.
Após esse achado, meu quadro parou de progredir violentamente, fazendo com que tivesse pequenas perdas de movimento de maneira mais lenta. Por conta disso, foi decidido que era hora de começar a escola
A antroposofia possui uma pedagogia educacional própria chamada Waldorf. Nela, o foco não é apenas no conteúdo, mas também no desenvolvimento do aluno, que é estimulado a brincar, pintar, cantar, ler, escrever etc.
As provas são raras no ensino fundamental, começando lentamente a partir do 6° ano e se intensificando no ensino médio.
O maior desafio era achar uma escola acessível, que topasse receber um estudante com deficiência.
Mas logo encontramos um jardim de infância Waldorf que passei a frequentar com uma acompanhante terapêutica, levando minha cadeira de rodas colorida para todos os lugares.
Estudei a vida inteira nessa pedagogia. Após completar o jardim, mudei para uma escola que possuía o ensino fundamental e, posteriormente, abriria o ensino médio. Essa escola foi muito acolhedora.
Construíram rampas e brinquedos acessíveis, adaptaram as aulas para que eu pudesse participar e meus amigos passaram a me ajudar com os materiais escolares.
Foi uma grande conquista, pois ganhava mais independência sem precisar de uma assistente ao meu lado o tempo inteiro.
No primeiro ano de alfabetização, minha maior preocupação era que eu não conseguisse escrever. Mas isso se mostrou irreal. Além da escrita, realizei inúmeras atividades manuais, como tocar flauta, pintar, costurar, tricotar, entre muitas outras
Às vezes, os intervalos eram chatos, pois as pessoas saíam para jogar bola e eu ficava sozinho na sala. Contudo, quando isso acontecia, levava um livro ou ficava conversando com os professores e, assim, fui pegando gosto por estudar, mesmo nos horários de lazer.
Isso se intensificou muito na pandemia, mas vamos falar dessa história mais para a frente.
Aos 12 anos, vi surgir o primeiro medicamento para a AME. Era um remédio que estimulava o corpo a produzir o SMN 2.
Para deixar claro, nosso corpo possui o SMN 1, que é a enzima principal que eu não produzo, e o SMN 2, que é quase um substituto — e que, por eu produzir em pouca quantidade, não é suficiente para impedir a apoptose, mas ao menos consegue retardá-la.
Nesse momento, se iniciou uma série de 13 visitas ao hospital, já que esse remédio era intratecal, ou seja, aplicado com punção lombar no líquor da medula espinhal por uma agulha desagradável que entrava entre as vértebras.
Tenho que admitir que internar a cada quatro meses e ir ao centro cirúrgico não foi uma experiência divertida. Todas as vésperas do procedimento eram marcadas por choro e medo de minha parte
Houve vezes em que a veia de acesso no braço estourou, outras em que foi difícil encaixar a seringa na coluna, entre muitos acontecimentos que tornaram esses momentos bastante assustadores e dolorosos.
Pelo menos, desde essa época minha doença parou de progredir e, em alguns aspectos, mostrou uma melhora lenta.
No mesmo período, começaram as viagens escolares. Olhando para trás, muitas das coisas que fiz não repetiria jamais, mas foram, na época, muito divertidas e agora vejo sua importância para quebrar diversas barreiras.
Algumas das maluquices das quais participei contaram com a ajuda de um amigo e educador físico, que hoje mora na Austrália.
Foram várias trilhas, uma delas com 13 km de estrada de terra (lembrem da minha cadeira de rodas), campings, passeios de barco, explorações em cavernas, nadar no mar e conhecer o mangue
Fiz outras viagens muito legais pelo mundo, conhecendo regiões, culturas, experimentando comidas exóticas, ouvindo músicas diferentes.
Gosto muito de música, fiz aulas de piano, já toquei até bateria e cantei solos em vários teatros da escola.
Outra parte muito importante na minha vida é o esporte. Minha paixão por ele remonta aos meus tempos de menino, nas Olimpíadas de Londres, em 2012.
Lembro-me de assistir e ficar pensando como seria divertido ser um atleta nos Jogos Olímpicos. Todavia, esse desejo ficou dormente por anos, pois era difícil achar um lugar com esportes adaptados em minha cidade.
E olha que eu morava em cidade grande. Imagina em lugares remotos desse Brasil?
Mesmo adormecida, essa vontade ainda habitava em mim, e em 2016 ela reapareceu com força quando fomos ao Rio assistir às Paralimpíadas.
Mas foi só em 2021, nas Olimpíadas de Tóquio, após assistir a Rayssa Leal detonando no skate, que eu decidi procurar algum lugar que oferecesse treinos de bocha paralímpica. Não sei de que lugar tirei esse esporte, pois nunca havia visto, mas é um dos mais inclusivos que existem
Após uma busca por lugares que oferecessem treinos, acabei encontrando um projeto de inclusão do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) para jovens com deficiência. Lá, além de uma incrível estrutura e um ótimo treinamento, fiz vários amigos muito queridos.
Comecei a treinar no fim de 2021 e, em menos de um ano, competi pela primeira vez, ganhando ouro nas Paralimpíadas Escolares Regionais.
Dois anos depois, fiquei entre os três melhores jovens da minha categoria no campeonato brasileiro sub-21. Já são quatro medalhas em seis competições e tenho esperança de que muitas mais estão por vir
Participar de campeonatos foi muito difícil no começo porque não tinha um preparo psicológico para aguentar a tensão.
Mas conforme fui participando e fazendo novas amizades, adquiri mais calma, foco e resiliência.
Hoje, mesmo que ainda sinta um frio na barriga e precise sempre de concentração, já é uma atividade muito mais tranquila e divertida.
Faz pouco tempo, recebi um convite para fazer parte de um dos melhores times de bocha paralímpica do Brasil e me desenvolver ainda mais.
Paralelo a isso, um novo remédio para a AME foi criado. Este, diferente do primeiro, era via oral, sem a necessidade de internações complexas em hospitais. Foi uma grande alegria para toda a minha família
Atualmente, este medicamento está disponível no SUS para as pessoas com AME tipo 1 e 2. Tem gosto de morango, mas eu sinto mesmo um gosto de viver.
Com o final da escola se aproximando, comecei a pensar no que faria. A princípio, cogitei fazer faculdade de história, que é uma das minhas matérias favoritas.
Porém, no começo de 2023, conheci o mundo da linguística e, na metade do ano, resolvi que queria prestar FUVEST, ingressar na USP e mudar-me para São Paulo, onde poderia estudar e intensificar meus treinos.
Meus pais, que já passaram tantas aventuras comigo, prontamente me apoiaram. O problema é que eu nunca havia treinado para fazer vestibular, visto que a Waldorf não tem foco em conteúdo de provas
Iniciei, junto com a escola, um estudo autônomo com vídeo aulas da internet e questões das edições passadas do vestibular.
Como dizemos aqui, Deus é muito bom conosco. Por incrível que pareça, a segunda fase do curso de letras tinha como matérias português, que é igual para todos, além de história e geografia, que são minhas disciplinas favoritas e que eu já estudava em casa no meu tempo livre.
Depois desta descoberta, o maior desafio era como eu realizaria a prova. Nesta questão, a bocha me ajudou muito, tanto fortalecendo o psicológico quanto meu físico
Afinal, passar dias inteiros competindo exige enorme esforço para ficar sentado — demanda semelhante quando fazemos uma longa prova escrita.
Mais uma vez, conseguimos vencer o desafio e, ao final, o resultado foi muito recompensador, pois passei na 1° chamada.
Mesmo passando por muitas aventuras, que outros chamariam de dificuldades, eu não teria feito de outra maneira.
Tomei a decisão de não ficar deitado me lamentando sobre minha condição, mas sim de me jogar na Vida — e Ela, desde então, tem sido muito generosa comigo
Talvez este seja o meu maior aprendizado: confiança, objetivos, perseverança e gratidão são algumas das chaves para o caminho de superação que todo ser humano precisa trilhar.
Agora, é hora de tocar minha cadeira de rodas pela Universidade de São Paulo, me preparar para os próximos campeonatos de bocha e fazer valer cada dia da minha jornada!
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