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“Foi graças sobretudo à coragem que o José Vicente me ensina a ter todos os dias que eu finalmente me percebi mãe”

Gisa Carvalho / 10 maio 2024
Gisa Carvalho e o filho José Vicente em seu "mêsversário" de 7 meses.
Gisa Carvalho - 10 maio 2024
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Lembro-me com muita clareza do momento em que José Vicente nasceu. De sua passagem por meu ventre, de escutar que eram 4h da manhã, em ponto. Mas naquele mesmo instante, uma correria, ele passou por meu colo apenas para que eu dissesse: “oi, bebezinho”. Escutei ao fundo a pediatra: “pessoal, eu vou levar”. 

A espera de um filho é sempre um processo cheio de angústias e desafios. São muitas dúvidas, inseguranças e inquietações. A gente vai escutando uma história aqui sobre noites mal dormidas, outras sobre baby blues e depressão pós-parto, umas acolá sobre as dores e dificuldades da amamentação e vai ficando cheia de novos medos. 

Em um caminho de privilégios financeiro e informacional, fui me cercando de cuidados profissionais, consultorias e tudo que pudesse mediar esse momento que não me parecia exatamente mágico, como me contavam as narrativas de ficção, mas nebuloso… Eu esperava parir para as luzes serem acesas 

Depois de uma gravidez cheia de enjoos, mas saudável, bem amparada, escolhi o parto normal. Não natural, sem intervenções farmacêuticas. Com quase 40 semanas e controlando uma diabetes gestacional, optamos (eu, meu marido, minha obstetra, minha enfermeira e minha doula*) pela indução medicamentosa. 

Acompanhada por mulheres inteligentes, seguras e afetuosas, me senti segura para entrar naquele portal que já se anunciava transformador. 

JOSÉ NASCEU SEM RESPIRAR SOZINHO E LOGO FOI ENTUBADO

As contrações começaram por volta das 19h, depois do jantar. Cólicas fortes, mas ainda acompanhadas de boas risadas. Depois, foram se intensificando e o lugar mais confortável para mim era sentada em uma bola suíça embaixo do chuveiro com água muito quente. 

A bolsa rompeu por volta da meia-noite. As dilatações seguiam o tempo previsto de 1cm/h. Os batimentos cardíacos do bebê eram monitorados constantemente e estavam bem 

Com a intensificação das dores, pedi por analgesia e fomos para o centro cirúrgico. Dormi por cerca de uma hora, depois voltamos às contrações. Com as dores mais suportáveis, voltamos a conversar e o ambiente, apesar de escuro, me dava a sensação de segurança e acolhimento. 

Mesmo com muita dor, eu conseguia perceber a cabeça dele chegando. Depois, todo o corpo passando entre as minhas pernas. Como numa luz que pisca forte, sem que eu entendesse bem o que estava acontecendo, eu precisava esperar para saber do meu filho. 

Um tanto mareada, costurando as lacerações, vi o meu marido entrar novamente no centro cirúrgico com uma expressão desolada. Foi quando eu entendi que as coisas não estavam bem 

José nasceu sem respirar sozinho. Anóxia. Não ouvimos seu choro, mas em meio aos hormônios, esperando a placenta sair sozinha, eu nem lembrei que precisava escutar. Ele foi levado pela pediatra para ser reanimado. 

A escala de Aparência, Pulso, Gesto, Atividade e Respiração (APGAR), que mede a saúde do recém-nascido e varia de 0-10 de acordo com a presença ou ausência dos sinais nos primeiros minutos, foi de 1 no primeiro minuto. Com cinco minutos, subiu para 7, porque já tinha sido entubado e respirava com a ajuda dos aparelhos. 

Com esta nota, significa que ele nasceu em morte aparente. Ao ouvir isso, sem entender direito em que pé as coisas estavam, se isso tinha ou não passado, eu desabei 

Os momentos seguintes não foram acompanhados por nós. Eu ainda sangrava muito pelo pós-parto e José tinha entrado na UTI. Soubemos depois que ele teve convulsões, o que significava danos cerebrais. E que, portanto, precisaria fazer uma hipotermia neuroprotetora. Uma espécie de coma induzido, para que baixassem os estímulos e as atividades cerebrais, de modo a evitar novos danos. 

Precisávamos esperar 72h para saber se ele iria acordar. 

AS PESSOAS DIZIAM QUE EU ERA MUITO FORTE, MAS NAQUELA SITUAÇÃO EU NÃO SENTIA FORÇA ALGUMA

Sair do hospital sem nosso filho e sem saber se ele viria conosco foi uma dor indescritível. Chegamos em casa e estavam chegando os presentes, que eu sequer consegui olhar. 

Não entrei no quarto, não repassei as lembranças do parto, não podia nem ver minhas fotos grávida. 

Naquele momento eu me calei. Não conseguia repetir essa história para quem perguntava se estava tudo bem. Tinha medo, muito medo. Mas, ao mesmo tempo, me vi resgatando uma fé, uma confiança que há tempos eu negava a existência. Porque era o que eu podia ter naquele momento. 

Durante esse tempo, descobri uma dor num lugar e numa intensidade que eu nem sabia que existiam. Um medo profundo de perder alguém que eu ainda estava conhecendo, mas que esteve comigo durante os nove meses que passaram 

As pessoas começaram a me dizer que eu era muito forte. Mas naquela situação, eu não sentia força; entretanto, não tinha outra coisa a ser. Era resistir para lutar por ele, com ele. José, sim, era força e coragem. 

Mas nem todos os dias eram de confiança. Perdi as contas de quantos momentos vivi em estado de tristeza e choro preso. Um choro que eu não queria soltar nem sozinha, nem com as pessoas queridas que se manifestavam para me abraçar. 

O meu único conforto seria a melhora de José. Por isso, desenvolvi também um grande afeto pelas médicas, enfermeiras, técnicas e fisioterapeutas da UTI, que diariamente cuidavam do nosso menino e em quem confiávamos muito. 

FOI PELO ALIMENTO, O LEITE MATERNO, QUE CONSEGUI DIZER AO MEU FILHO: “ESTOU AQUI COM VOCÊ”

Todos os dias éramos acolhidos e recebíamos as notícias que, aos poucos, iam melhorando. 

Um dia, quando José melhorou das dores que sentia, que diminuiu a morfina, pude segurá-lo em meu colo. E ali senti que podia identificar que lugar novo era aquele onde pulsava meu coração. 

Eu mal podia me mexer, porque todos os aparelhos seguiam ligados. Eram muitos fios, entre tubos, sondas e acessos. Mas ele estava no meu colo. Sentimos nossos calores, tocamos nossas peles. Nos reencontramos. E naquele momento o brilho da vida parecia voltar 

Eu cantava baixinho para ele. Passei a ficar os dias inteiros no hospital, com meu pequeno no colo. Depois de um tempo difícil coletando leite no lactário frio e impessoal, pude, enfim, começar a amamentar. Como se meu leite naquele instante desse o nó que firmava a nossa conexão. Me apresentei ao José e foi pelo alimento que consegui dizer a ele: estou aqui com você. E sempre estarei. 

Os procedimentos médicos continuaram. Cirurgia, drenagem, transferência de hospitais. Me internei com ele. Entramos e saímos juntos do quarto onde eu ficava acordada o tempo inteiro, de olho nos monitores de oxigênio e de medicação. 

Segurava meu bebê tendo cuidado com os drenos, com os curativos, com os acessos. Eu dormia no leito do hospital, onde fazia um pequeno ninho que o deixava seguro. 

A MATERNIDADE É UMA CONSTANTE SUCESSÃO DE DESAFIOS

Por um tempo, achei que minha maternidade não tinha sido iniciada, pois não tinha levado meu filho para casa. São as confusões que às vezes nos alcançam. O puerpério não vivido, o medo, as incertezas, diagnósticos imprecisos embaralhavam aquele sentimento que eu não conhecia e que me inundava. 

Precisei de amigas que, sutilmente, nas poucas conversas que eu conseguia ter, me disseram que tudo bem não estar bem. Afinal, o que estava acontecendo com a gente era muito grande. 

Mas a maternidade esteve ali o tempo todo, sendo construída, significada em cada gesto, em cada toque com a ponta dos dedos. Nos movimentos da barriga, no parto intenso e alegre, no medo mesmo. Nos olhares distantes, na coleta de leite em casa para o peito não secar. Na força que eu achei que não tinha. E principalmente na coragem que o José Vicente me ensina a ter todos os dias 

Hoje, José está bem. Teve alta da neurologia, não precisa mais de anticonvulsivantes. Foi liberado da fonoaudiologia, mama corretamente, começou a introdução alimentar, alcançou os marcos esperados para a idade e segue fazendo fisioterapia e terapia ocupacional como acompanhamento. É um menino simpático, risonho e que gosta muito de conversar. 

De tudo, registro que talvez a coisa que mais resistimos a aceitar, mas talvez seja a mais concreta: a maternidade é uma constante sucessão de desafios. Mas com coragem e muito amor conseguimos superar e vencer.  

 

* Destaco aqui que, nessa história, todas as decisões foram tomadas em parceria com profissionais em quem confiamos, pessoas que se baseiam em evidências científicas e com o cuidado humanizado.

 

Gisa Carvalho é mãe do José Vicente, jornalista e professora de Comunicação na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 
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