Nossa história começa em 2010, quando nos casamos. Claudia sempre teve cachorros. Obviamente, ao casar, ela queria cachorros…
Eu sempre gostei. Mas, ao mesmo tempo, achava que ia dar trabalho (sim, eu estava certo).
O combinado foi que depois de seis meses de casados, pegaríamos o primeiro cão. Os seis meses acabaram virando sete anos.
O ponto de virada aconteceu em uma viagem que fizemos para Barcelona. Claudia deu um ultimato: ou pegávamos um cachorro ou era o fim. Eu, prontamente, esqueci que dava trabalho e cedi.
A escolha da raça foi um tanto quanto aleatória: colocamos três raças que gostávamos em pedaços de papel e sorteamos. O escolhido? Whippet.
Passamos a procurar por canis da raça. Até que veio o Gaudí (em homenagem ao arquiteto catalão).
Pouco menos de três meses depois, pegamos mais um whippet. O terceiro cão tem mais uma história interessante: Claudia me deu de aniversário um chihuahua.
Ela comprou o cachorro em um petshop de um amigo nosso. Eu refutei, não queria um chihuahua. Então, devolvemos o filhote. Mas queríamos, sim, um terceiro cachorro. Resolvemos então adotar.
Queria uma vira-lata preto. Achamos o Azeitona, resgatado por uma protetora independente, que tira cães das ruas da região de Cotia (SP)
A história dele é semelhante a de muitos animais: vivia nas ruas, foi acolhido, duas adoções frustradas. Uma das adotantes o devolveu “porque não era tão bonito como nas fotos” e a segunda “porque não trouxe alegria para o lar”.
Antes de vir para casa, ele passou por uma cirurgia, pois Azeitona tinha um corpo estranho no intestino. Após essa operação, ele melhorou mas, tempos depois, voltou a ficar mal.
Ele chegou num sábado na parte da tarde. À noite, achamos que não era normal estar tão abatido, mesmo a protetora tendo dito que ele melhoraria com o tempo.
Decidimos levá-lo numa consulta em um hospital. Esse, talvez, tenha sido nosso primeiro grande baque dentro do mundo dos vira-latas: o veterinário que o atendeu disse que, por ser um cachorro de rua e vira-lata, deveríamos levá-lo a um ponto de atendimento público para não gastarmos dinheiro
Azeitona chegou aqui quase morto, pesando sete quilos, mal andava, não se aguentava em pé. Hoje, pesa 13 quilos, é totalmente integrado.
Essa adoção foi nossa segunda virada de chave: já tínhamos uma conta no Instagram para guardar lembranças dos whippets (e do Azeitona) e passamos a acompanhar a vida deplorável de milhares de animais nas redes.
Naquele momento, decidimos que dali para frente, todos os nossos futuros animais seriam adotados.
Nosso quarto animal foi um presságio do que viria mais adiante. Paçoca, um crista chinês idoso, usado como matriz para reprodução em canil clandestino, desacostumado com contato humano. Ele veio logo no início de 2020. A partir daí, nossa trajetória mudou de vez.
Claudia assistiu a um vídeo de uma família dos EUA que adotava cães em estágio terminal. Pensamos: podemos fazer isso por alguns animais, dada sua baixa expectativa de vida.
Foi aí que vimos uma cachorra em estágio terminal para adoção no antigo Instituto Luisa Mell (hoje, Instituto Caramelo). Ela tinha expectativa de vida de dois meses, em função de três cânceres diferentes.
Começou, então, toda a nossa história com cães terminais e idosos, que chega até os dias de hoje, com 13 cães
A Maria, vira-lata terminal, acabou ficando conosco por seis meses. Um detalhe: quando fomos adotá-la, o instituto tinha um canil com seis whippets.
Acabamos trazendo a Lina, um Whippet pequenina e doce. Maria se foi em fevereiro de 2021.
Em maio do mesmo ano, trouxemos do Sul do país duas galgas, Cléo e Helena. Ambas eram exploradas na região, utilizadas para a caça a javalis e em corridas.
As duas tinham câncer e Cléo, três patas (ela ainda está conosco). Helena se foi pouco mais de um ano depois, em decorrência do câncer (ao final, descobrimos que tinha também osteossarcoma)
Em junho, trouxemos o Nestor, vira-lata cego, surdo, idoso e renal crônico (quadro irreversível). Viveu conosco apenas 15 dias.
Em outubro, trouxemos o Léo, mais um vira-lata idoso, que não andava e tinha os dois ouvidos fechados por cirurgia.
A história do Léo merece um destaque. Cachorros como ele chegam sem histórico algum.
Muitos vivem jogados em abrigos, que estão virando depósitos. Não temos informações confiáveis de temperamento, hábitos ou coisas que o valham.
A adoção dele foi um pedido de uma veterinária que trabalhava num desses abrigos. Sua primeira semana (que quase foi a única) se desenrolou de forma um tanto quanto cansativa para todos: ele latia 20 horas por dia. Não dormia mais do que uma hora consecutiva
Nenhum remédio era capaz de deixá-lo mais tranquilo. Não era possível almejar qualquer tipo de solução. Parecia que o caminho natural seria abreviar o sofrimento (dele e nosso).
Numa sexta feira, data que marcava uma semana de adoção, chamamos nossa veterinária para efetuar a eutanásia.
No mesmo dia, mas pela manhã, outra veterinária tinha vindo fazer uma sessão de acupuntura nele. Ela trouxe uma medicação chinesa dizendo que havia a possibilidade de ajudá-lo a se acalmar.
A maior parte do tempo, ao longo dessa semana, a Claudia foi responsável por cuidar do Léo. Quando a veterinária chegou em casa na sexta à noite, eu disse: “Tenho essa medicação e gostaria de testar antes de tomar uma decisão sem volta”.
Combinamos então que ministraria o remédio e manteríamos contato no final de semana, caso não houvesse evolução. Remédio ministrado, dedos cruzados.
No sábado pela manhã, o Léo acordou “um cachorro normal”. Seguia sem andar, com várias limitações. Mas aquela agonia da semana inicial tinha acabado. Não latia mais por horas a fio
Com o tempo, passou a dormir bem, voltou a ficar em pé, dar alguns passos. Foi operado de um câncer. Ficou conosco por mais nove meses.
No final, sua situação voltou a se complicar demais, com muito sofrimento para ele. Era hora de abreviar a dor. Léo se foi em maio de 2022.
Helena, galga que trouxemos do Sul, se foi em seguida, em agosto de 2022.
Entre fevereiro de 2020 e agosto de 2022, tínhamos perdido, portanto, quatro animais.
Neste momento, “ampliamos” o leque e começamos a adotar não mais apenas terminais, mas também idosos.
A expectativa de vida deles não é tão curta quanto a de terminais, mas, mesmo assim, é um prazo que, de forma responsável, podemos dar conta.
Quase que de uma vez vieram quatro animais: Léinha, Manolo, Barbosa e Doty. Vira-latas, velhos, fora dos “padrões de beleza” que a sociedade busca até em animais.
Cães que passaram suas vidas em abrigos, esquecidos, invisíveis. Neste momento, terminais e invisíveis passaram a ser nosso foco nas adoções. Queremos aqueles que ninguém mais quer
Os quatro chegaram entre agosto e outubro de 2022. Em janeiro de 2023, adotamos mais um terminal, o Tadeu. Cego, velho, sem uma orelha, caquético.
Dizem que caiu em buraco no abrigo e foi achado dias depois. Ficou aqui pouco mais de 70 dias.
Em junho de 2023, trouxemos o Café, vira-lata de porte médio, idoso, preto — o combo “maldito”, que faz com que muitos cães com estas características nunca sejam adotados. A cor preta e o porte médio ainda são um empecilho nas adoções, fora o fato de ser um SRD (sem raça definida)
Em outubro de 2023, trouxemos Zé e Chiquinho, o mais velho da turma (deve ter uns 17 anos). Não enxerga, não escuta, é vira-lata.
O Zé tem uma história interessante: ele não abre a boca. Provavelmente no passado, houve uma fratura em sua mandíbula que calcificou errado por falta de cuidado. Ele se alimenta pela lateral da boca, com ajuda da língua.
Em novembro, perdemos o Barbosa, o mais famoso da turma nas redes sociais. Ele era o que mais suscitava comentários.
Barbosa era um cão vira lata, velho, sem dentes, rebaixado, língua pra fora. Se você ler novamente a frase anterior sem ver qualquer imagem, pode dizer: “Ah, esse aí não vai fazer sucesso nunca”.
Mas ele era de um carisma ímpar. Reclamão, valentão, ladrador… Punha todo mundo pra correr, a despeito de ser pequeno.
Ele era um cachorro em sua aposentadoria plena. Pense em um ser bonzinho de tudo, boa praça e ao mesmo tempo super encrenqueiro, dramático…
Viveu sua vida inteira num abrigo. Chegou aqui já com seus 15 anos. Enquanto esteve conosco, foi operado por conta de um câncer. Pouco antes de partir, descobrimos que tinha doença do carrapato.
Sua partida foi repentina: acordou bem; uma hora depois estava pálido, gelado. Corremos para o hospital imediatamente. Duas horas depois, tinha partido.
A cada adoção e tratamento, vemos o renascimento desses animais. Mesmo que tenham sofrido, tenham sido negligenciados, tenham vivido nas ruas…
Não importa muito o histórico: o que eles devolvem – e sempre devolvem – é muito mais do que o simples fato de os termos acolhido.
Damos casa, comida, respeito, dignidade e carinho. Eles nos dão a vida deles. Eles nos amam mais que a si mesmos. É uma devoção tão grande que eles têm por nós que não há dinheiro no mundo que pague isso
Se você tiver paciência com eles no processo de recuperação dos traumas, conhecerá um dos amores mais puros e genuínos que existe.
Gosto muito de uma entrevista que Freud concedeu ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. Transcrevo abaixo.
Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
Viereck: Por quê?
Freud: Porque eles são mais simples. Eles não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de se adaptar aos padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico […]
Viereck: Então, você é um grande pessimista?
Freud: Não. Não permito que nenhuma reflexão filosófica me roube o prazer das coisas simples da vida. Os motivos pelos quais se pode amar um animal com tanta intensidade, é porque ele possui emoções simples e diretas, de uma vida singela, liberta dos conflitos de uma sociedade que impõe restrições.
É mais fácil nutrir amor pelo simples.
Trata-se de um afeto sem ambivalência.
Os cães não possuem uma personalidade dividida, nem a maldade do homem civilizado, tampouco o sentimento de vingança dos homens.
Um cão tem a beleza de uma existência completa em si mesmo.
E apesar de todas as divergências, quanto ao desenvolvimento orgânico, o cão possui um sentimento de afinidade íntima e de solidariedade incontestável.
A resposta imediata é: nunca vamos nos acostumar. Conversando um pouco mais, chegamos na história da Helena, que se foi de uma hora para outra.
Não estávamos minimamente preparados e sempre falamos: é como se ela tivesse sido atropelada, nós foi tirada, sem que tivéssemos conseguido entender.
A verdade é que nada descreve o que sentimos. Cada um lida com o luto de uma forma. Podemos dizer que estamos em constante luto, muito em função da formação da família ser de cães mais velhos
Desde que começamos a adotar esses animais, já perdemos seis. Cada dor é uma dor, pois os vínculos que se formaram com cada animal foram únicos.
E, mesmo com esses seis que já se foram, não estamos preparados. Talvez jamais estaremos.
A dor da perda é, e sempre será, proporcional ao amor dado. Não é fácil.
Alguém um dia nos mandou uma mensagem dizendo o seguinte: “Muita gente passa uma vida procurando o amor… Vocês simplesmente abriram a porta de casa e deixaram esse amor entrar”.
Se cuidamos dele por uma semana, um mês, um ano… O tempo pouco importa: o que de fato fica é que para aquele animal, mudamos sua vida
A dor vai passar. Vamos seguir vivos. Para muitos deles, somos talvez a única esperança.
Fizemos uma escolha em determinado momento da vida. Não planejamos nada. Deixamos as coisas irem acontecendo.
Costumo dizer que ninguém, em sã consciência, planeja ter 13 cães (e manter todos sozinhos).
E por que isso interessa? Porque uma escolha consiste em avaliar as opções que a realidade oferece e renunciar a algo, acreditando que aquilo que se escolhe seja a melhor opção. Portanto, as escolhas excluem.
Em nosso mundo utópico, não existem abrigos de animais abandonados. Em nosso mundo utópico, leis funcionam. Ainda nesta utopia, somos todos felizes, saudáveis e a sociedade é plenamente funcional.
Mas será que a realidade é, em algum grau, próxima dessa utopia? Obviamente não. Há algum tempo nossa escolha foi justamente essa: dar lar a cães esquecidos, entre terminais e idosos, predominantemente vira-latas.
Muita gente, quando contamos nossa história, nos tece diversos elogios. Agradecemos, claro, por essa gentileza. Mas, para nós, somos pessoas absolutamente comuns que fizeram uma escolha
Poderíamos lamentar, cobrar por alguma medida de autoridades ou poderíamos tentar mudar o destino de alguns deles fazendo o melhor possível. Optamos pelo segundo caminho.
O Brasil tem abrigos superlotados (e implorando por doações), dezenas de milhares de animais nas ruas, políticos absolutamente incompetentes (que se aproveitam da causa animal em benefício próprio).
Essa é a nossa realidade, nua e crua, sem tergiversar. É o que gostaríamos? Não, mas é o que temos.
E é diante disso que fazemos nossas escolhas. Escolher não fazer nada também é uma decisão. A diferença está nas consequências.
Luis Nuin, 42, é casado com Ana Claudia Cruz, 41, arquiteta e apaixonada por cachorros. Ele trabalha no mercado de capitais e aprendeu a amar os cães por influência da esposa. Hoje, ambos se dedicam parcialmente a fomentar adoção de cachorros idosos e vira-latas. Divulgam o dia a dia dos seus adotados no perfil Gangue dos Galgos.
Moradores de Canoas, na Grande Porto Alegre, Gustavo Furtado e Jéssica Phoenix contam os momentos de tensão vividos em meio à enchente e como acabaram se juntando ao trabalho de identificar animais perdidos com apoio de uma plataforma online.
Nesse feriado de Finados, vale a reflexão: morrer é inevitável. Já morrer sofrendo, sob tortura, em desespero, sem ter a quem recorrer, é coisa que cada um de nós deveria poder evitar em sua vida.
Voluntária num abrigo de animais, Sophia Porto Kalaf um dia decidiu levar Marrom, um cachorro paraplégico, para casa. Hoje ela ajuda a encontrar um lar para cães e gatos com deficiência através do seu Projeto Cãodeirante.