Não é de hoje que ouvimos falar sobre a relação entre trabalho e propósito. Quando o assunto é a história de um negócio, é frequente a narrativa sobre alguém que decidiu empreender por uma causa e, grande parte das vezes, em causa própria.
De início, este não foi o caso de Caio Bogos (28), mas passou a ser. O fato é que, ainda na faculdade, ele teve uma ideia que iria beneficiar pessoas com o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), por estímulo de um professor.
Quatro anos depois, o empreendedor teve uma surpresa: descobriu que também fazia parte desta parcela da população.
“A gente costuma falar aqui na aTip que talvez uma das primeiras pessoas impactadas pela empresa foi o próprio fundador… Sem o contato que passei a ter com adultos com autismo, eu não teria me descoberto dentro dessa comunidade”
A aTip se posiciona como um “ecossistema de inclusão de pessoas autistas no mercado de trabalho”. Em 2022, a startup faturou 500 mil reais.
O nome faz referência ao termo “atípico”, usado para falar de pessoas neurodivergentes: aquelas que têm alguma alteração cognitiva, neurológica ou comportamental, como o próprio TEA ou, ainda, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).
Paulistano, Caio cursava Sistemas de Informação na Faculdade de Informática e Administração Paulista (FIAP), em 2018, quando participou do Autismo Tech – então chamado de Challenge Autismo –, um hackathon cujo mote era criar projetos inovadores para impactar a comunidade autista.
Não havia um recorte por idade e, na época, a ideia do então universitário foi desenvolver uma plataforma que acompanhava a evolução da criança autista.
Nascia ali a primeira versão da aTip. Caio conta que, desde a adolescência, já tinha vontade “de gerar um projeto de impacto social que utilizasse a tecnologia como meio”:
“Me inscrevi no hackathon, fui uma das pessoas selecionadas (para viabilizar a ideia), mas, na época, pensei em algo direcionado às crianças, porque, de fato, é uma dor manter o acompanhamento delas de maneira digital, integrada, com todos os stakeholders que as envolvem”
Depois que a competição acabou, só ele permaneceu no projeto.
“O time se desfez, o que é natural, mas eu acreditava bastante no propósito da aTip. A partir disso, fui conhecendo as pessoas que se tornaram cofundadoras da companhia.”
A primeira pessoa foi Joyce Rocha (30), que trabalhava com experiência do usuário e conheceu Caio no hackathon, quando ficaram amigos. Por ter o TEA, ela sempre se perguntava: “por que não estamos falando de autistas adultos?”
O questionamento foi o que levou a startup a pivotar.
“É que, com o passar do tempo, o time e eu percebemos que pouco se falava sobre a inclusão de pessoas com autismo no mercado de trabalho. A gente se esquece que a criança vai crescer, se desenvolver e precisar trabalhar”
A Joyce (que não está mais na empresa) levou Elise Lisbôa (28), doutora em psicologia – especializada em autismo –, para a equipe. Levou, também, o Leonardo Lima (28), atual CTO da aTip, com quem já havia trabalhado. Depois, veio Marcelo Fernandes (44), que lidera a parte de marketing e branding e que tem uma filha dentro do espectro autista.
Por fim, para compor o quadro societário, entrou Joceli Drummond (70), também doutora em psicologia, mas com um olhar mais voltado para o universo corporativo (e que complementa experiências com Elisa, que tem a bagagem mais clínica).
A mudança de rumo ocorreu em 2021, quando a aTip passou a se firmar como o elo entre organizações e a comunidade autista adulta, oferecendo um portfólio B2B com “soluções de inclusão”, como costuma chamar.
Até aquele ano, os sócios investiam na empresa com recursos próprios. Mas, logo depois que pivotaram, conseguiram três investidores-anjo, entre os quais estava o orientador do Caio na faculdade (já que o projeto acabou virando seu Trabalho de Conclusão de Curso).
No total, o investimento externo foi de 650 mil reais; hoje, são dez clientes recorrentes.
Ao longo de todo o ano de 2021, Caio e os sócios se dedicaram a fazer pesquisas para entender a comunidade de maneira mais profunda.
O objetivo era saber quais eram, de fato, as barreiras das pessoas com TEA para ingressar no mercado de trabalho e, principalmente, para se manter empregadas; por outro lado, diz Caio, eles também queriam entender o lado de quem contrata.
“Depois das pesquisas, a gente chegou a algumas proposições sobre o que poderia entregar, tanto para empresas, como para a comunidade. A partir disso, propusemos um produto-piloto que chamamos de ‘Jornada Atípica’, que tem este nome até hoje”
A tal jornada consiste em estabelecer um “diagnóstico” (quantitativo e qualitativo) do cliente, inclusive fazer o processo seletivo a partir do mapeamento de um perfil de candidato para uma funcionalidade específica. Isso porque a aTip desenvolveu uma metodologia para encontrar o perfil de funcionalidade.
Passada a etapa de hunting, a startup cuida do onboarding do colaborador e segue acompanhando-o ao longo da carreira dentro da empresa parceira (daí chamar o processo todo de jornada).
O primeiro cliente foi o Ambev Tech, braço de tecnologia da fabricante de bebidas. O piloto surgiu durante um bootcamp da própria multinacional.
A partir desta experiência, outras companhias apostaram na aTip. Caio cita EY, Capgemini, Microsoft, iFood e Grupo Boticário.
Uma segunda solução oferecida pela aTip, além da Jornada Atípica, é a vertente de conteúdo para empresas, que envolve sensibilização e treinamento (por meio de workshops) sobre o TEA.
Caio explica:
“A gente tem uma série de conteúdos já formatados que acaba aplicando nas organizações, que nem sempre estão preparadas para uma jornada de ponta a ponta, mas querem dar o primeiro passo, entendo onde podem se inserir dentro de um contexto de neurodiversidade e inclusão de pessoas autistas”
Por fim, a terceira solução do portfólio da companhia é justamente o Autismo Tech, o hackathon que a originou – e que, há dois anos, vem sendo organizado pela aTip.
A startup faz a ponte com as marcas patrocinadoras (de 10 a 12 anualmente) e oferece contrapartidas, como bolsas de estudo (mais de 600 foram concedidas no ano passado) e prêmios.
“Para projetos que ocorrem uma vez por ano e são abertos a toda comunidade como o Autismo Tech, a participação das startups e empresas se dá por cotas que vão de 15 mil a 64 mil reais, com contrapartidas, sensibilização para lideranças, pessoas mentoras das empresas participando e apoio para a intencionalidade via vagas afirmativas”
O empreendedor diz que a startup também tem “um portfólio de projetos mais customizados, que pressupõe operacionalização, atração e hunting de talentos, seleção e primeiras acomodações, além do perfil de funcionalidades”:
“Esse conhecimento proprietário da atip ajuda a dar clareza para lideranças e times que atuam em conjunto com os RHs corporativos, fazendo da neurodiversidade mais um pilar de Diversidade e Inclusão.”
Apesar das conquistas, como diz Caio, o principal desafio que a aTip enfrenta é o fato de que saúde mental ainda é um tabu para muitas organizações.
“Não foi um percurso fácil — e até hoje não é —, porque, quando se fala em neurodiversidade, a invisibilidade é grande, principalmente quando se trata de autismo na fase adulta. Geralmente se pensa muito na criança, mas ela cresce”
A dificuldade no diagnóstico de pessoas que se encontram no nível 1 do espectro também é um ponto importante a considerar. É o caso do próprio Caio, que só recebeu o diagnóstico em 2022.
Uma vez neste grau, segundo ele, é mais fácil mascarar as próprias características (mesmo que de maneira inconsciente) para tentar se adequar ao meio em que está inserido.
“Foi o que eu fiz a vida inteira, assim como outras pessoas da comunidade, que passam despercebidas por não precisar de suporte para algumas atividades, mas, quando mais as características são mascaradas, maior a chance de outras questões de saúde mental surgirem, como depressão e ansiedade”
No caso dele, as barreiras para se relacionar e interagir socialmente eram acolhidas pela família, em especial pela mãe, que sempre apoiou traços que outros consideravam “estranhos”. A convivência diária com colegas da aTip que estavam no espectro fez com que ele identificasse em si os sinais e buscasse ajuda.
Normalmente, aqueles que se encontram nos graus de suporte 2 ou 3 apresentam marcadores mais evidentes e o diagnóstico vem mais cedo. São estes sinais que levam ao estereótipo de um autista, frequentemente associado a alguém que não tolera qualquer tipo de interação.
A dificuldade de se inserir no mercado de trabalho varia conforme o nível do transtorno, o que não significa que, com grau 1, seja tão mais fácil. Caio, aliás, faz questão de dizer que se considera “uma exceção à regra”.
Ainda não há dados conclusivos sobre qual é a parcela do Brasil com autismo. Há uma estimativa de que o país tenha mais de 6 milhões de pessoas com TEA, com base em uma comparação com os dados da agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
(Nos EUA, 1 em cada 36 crianças foi identificada com deficiência de desenvolvimento, em um recorte de estudo que vai de 2009 a 2017. Entretanto, o autismo não é a única condição avaliada.)
O IBGE incluiu o tema na edição de 2022 do Censo Demográfico, conforme a determinação da Lei nº 13.861 de 2019, que é fruto de reivindicação e articulação da própria comunidade autista brasileira. Os resultados, porém, ainda não foram divulgados pelo instituto.
Os próximos passos da startup, agora, são evoluir tecnologicamente a operação e incluir outros temas para trabalhar com os clientes.
O empreendedor afirma:
“A gente tem um formato que é mais voltado para consultoria que para uma startup de base tecnológica. Precisamos investir para ter plataformas integradas e, em paralelo, evoluir para conseguir falar de maneira mais direta sobre outras condições, como TDAH”
Para Caio, a forma com que a companhia lida com questões delicadas que envolvem a neurodiversidade, com empatia (e conhecimento de causa) é um dos principais diferenciais.
“O mundo em que vivemos tem muito potencial quando abraçamos pessoas que pensam de maneira diferente, mas este potencial só vai ser explorado na máxima potência se tivermos um olhar mais empático para quem é atípico, para quem é divergente.”
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