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Depois de muito preconceito e uma noite de insônia, ele criou uma rede de psicólogos com foco no público LGBTQIAPN+

Geoffrey Scarmelote / 7 dez 2023
Hamilton Kida (o segundo, a partir da esq.) e o time da Rainbow Psicologia.
Geoffrey Scarmelote - 7 dez 2023
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O Brasil é a sétima nação mais populosa do mundo, com 203 milhões de habitantes, segundo o último censo do IBGE, divulgado este ano. É a nona maior economia global em 2023, com um Produto Interno Bruto de 1,8 trilhão de dólares, conforme dados do Fundo Monetário Internacional. 

É o país do futebol. Da caipirinha. Das belezas naturais. E da homofobia.

Uma estatística cruel e assustadora: há quatros seguidos, o Brasil lidera o ranking de países que mais matam homossexuais, transexuais e travestis no mundo, segundo o relatório da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (ILGA). 

Em 2022, foram 273 mortes, segundo um dossiê conjunto da Acontece Arte e Política LGBTI+, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). O documento mostra que os mais vulneráveis são mulheres trans e gays entre 20 e 39 anos.

Gay assumido desde a adolescência, o psicólogo Hamilton Kida, 36, fez do preconceito e da própria inquietação uma forma de empreender para ajudar a comunidade que integra. Assim nasceu a Rainbow Psicologia, uma plataforma de atendimento psicológico voltada à comunidade LGBTQIAPN+. 

A Rainbow já atendeu mais de 2 mil pacientes, que preenchem um formulário no site e a partir daí são encaminhados para um(a) determinado(a) profissional – mais de 200 psicólogos e psicólogas já passaram pela rede, mediante processo seletivo e uma entrevista.

“Seguimos a tabela de honorários do Conselho de Psicologia para basear os atendimentos”, diz Hamilton. “Os valores são combinados diretamente entre pacientes e profissionais.” Estes, por sua vez, pagam um valor fixo à Rainbow para fazer parte da rede.

“Também fazemos [atendimento] presencialmente, porque recebemos uma parcela de pacientes que não têm privacidade para fazer terapia em casa”

Hoje, há disponibilidade de atendimento presencial em São Paulo (capital, Itapevi, Jundiaí e Santos); Rio de Janeiro (capital); Minas Gerais (Betim); Brasília; Goiânia; Salvador; Curitiba; e Rio Grande do Sul (em Campo Bom e São Leopoldo).

A seguir, Hamilton fala ao Draft sobre preconceito, empreendedorismo e resistência:

 

Hamilton, como foi seu processo de descoberta enquanto homossexual?
Me descobri há muito tempo. Desde cedo, por volta dos 15, 16 anos, já estava em um processo de contar para as pessoas à minha volta. Consegui ter o apoio da minha família.

O meu pai hoje é falecido, mas era capitão do Exército. Então, tive uma educação bem formal e bem rígida. E tinha aquela suspeita, né, de que ele não me aceitaria por ele ser “militar demais”. E, quando contei para ele, foi muito tranquilo. Mais tranquilo, até, em relação à minha mãe. 

Ela entrou naquele lugar de “o meu filho vai sofrer”, né? Tinha um protecionismo. Depois, passou essa fase, ela viu que eu não tinha mudado e que ia ser a mesma coisa. Daí, sim, ela também foi tranquila. 

Percebi que o meu círculo pessoal mais íntimo, que era a minha família, me aceitava tranquilamente. Então, o que seria em relação aos outros? Não faria tanta diferença. Sempre falo em minhas palestras: quando a porrada vem de fora, dói menos do que quando vem de casa 

Portanto, acredito que isso me deu uma estrutura maior para poder fazer o trabalho de militância que faço hoje, de poder lidar com preconceitos e com qualquer demanda que enfrente na vida. Foi fundamental para mim ter esse apoio dentro de casa.

Isso é um gancho para a próxima pergunta. Crianças e adolescentes com trejeitos considerados “afeminados” costumam sofrer bullying. Você passou por isso na escola ou em algum outro ambiente? Tinha ideia do que estava acontecendo? Como fazia para tentar lidar com isso?
Passei por bullying na escola. Eu estudei em uma escola municipal, tive um círculo de amizade muito bom nesse sentido. Algumas amigas me deram uma estrutura muito bacana para lidar. Tanto no ensino fundamental quanto no médio. 

Sempre encontrei, de alguma maneira, uma rede ali de apoio. Principalmente professores. 

No ensino fundamental, tive uma professora de português chamada Nízia. Ela me apoiou muito nessa questão; na época, até forçava um pouquinho a barra, achava que tinha que me assumir. E eu não estava preparado para isso. Mas, de certa maneira, ela queria que eu fosse eu

Perdi contato com essa professora, mas hoje gostaria de encontrá-la e dizer “olha, sou eu, já consigo dar conta disso”. Então eu sempre tive pessoas, por assim dizer, mais adultas, que me apoiavam. 

Sofria bullying e era chamado de “viadinho” na escola? Era. Tentavam fazer trotes comigo também. Porém, houve o suporte de pessoas mais velhas que me protegiam. E isso foi muito importante para a minha construção também na escola.

Além dessa situação de bullying, você passou por algum episódio de violência física ou psicológica que tenha te traumatizado e que você se sinta à vontade para relatar?
Quando eu era adolescente, dois episódios me marcaram bastante. No primeiro, eu tinha 17 anos, estava ficando com um menino no Bar du Bocage — que hoje já nem existe mais —, ali na região central de São Paulo. 

Estávamos embaixo de uma marquise de um prédio residencial e senti uma “baldada” de água na cabeça 

Detalhe importante no contexto: tinha acabado de fazer uma microcirurgia para retirar uma verruga. E aí, peguei e coloquei [o líquido] na língua. Era salgado. Pelas minhas aulas de Química, falei: “Isso aqui é um ácido, o sabor de qualquer ácido é salgado”. 

Por sorte, tinha uma amiga que morava próximo, ali na rua Frei Caneca. Corri pra lá e ela estava em casa. Sorte dupla. Tomei banho, peguei uma camiseta do filho dela emprestada. E a minha camiseta, que era azul claro, ficou rosa. 

No menino com quem eu estava, respingou um pouco. Pegou mais em mim, mesmo. E era ácido. Aquilo poderia ter me causado sequelas para o resto da vida

Se não tivesse sorte de ter essa amiga que morava ao lado e tomado banho em questão de minutos, poderia ter sofrido algo pior.

Alguém chegou a ver na hora que jogaram o ácido? Tentaram ajudar?
Não. Naquela época era simplesmente comum. As pessoas tacavam ovo, tacavam xixi. Não era como é hoje, 20 anos depois. 

E eu não queria envolver meus pais para para processar, nem nada, por conta da dor de cabeça que seria para eles. Não por conta da minha sexualidade, porque eles já sabiam, mas porque eu era menor [de idade]. 

Se eu fosse maior, daria um jeito de tomar as atitudes necessárias.

E o segundo episódio?
Nele, eu tinha 18 anos. 

Havia saído de uma balada com um grupo de amigos e estava esperando a estação [de metrô] Anhangabaú abrir para irmos embora. E um grupo de skinheads começou a nos perseguir 

Tivemos que correr e fomos pegar o metrô lá na Consolação. Ali, acredito que poderia ter acontecido uma violência física.

E nós ainda vivemos em uma escalada da homofobia. Casos recentes, como a agressão sofrida pelo ator Victor Meyniel, em setembro deste ano, são recorrentes. Como você enxerga esse cenário?
É impossível falar em homofobia — ou lgbtfobia, como gosto de expandir a ideia — sem fazer um recorte de gênero, sem falar de machismo. 

Para mim, a grande maioria dos preconceitos que a gente passa estão relacionados ao gênero masculino. E é a masculinidade tóxica e compulsória que é cobrada desses homens. 

É comprovado cientificamente que grande parte dos homens homofóbicos são homossexuais que não se aceitam. Isso já foi referendado por uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia 

Testaram um grupo de homens declaradamente homofóbicos. Foi possível perceber que essas pessoas tinham desejo sexual por outros homens. Isso é comprovado — e faz com que essas pessoas não se aceitem. Não é regra que todos os homofóbicos são homossexuais que não se aceitam, mas é uma grande parcela. 

Logo, temos uma predominância de pessoas homofóbicas do gênero masculino por conta do machismo, pilar principal de todos os tipos de preconceito — se a gente falar em patriarcado, em dominação de poder, temos machismo, lgbtfobia, racismo, violências contra a mulher, feminicídio… 

Ser mulher no Brasil é fazer parte de uma “maioria minorizada”. E me ouvindo falar isso, me dei conta de algo que não tinha percebido: ser homem foi um privilégio muito grande nesse sentido.

Mesmo com bullying, homofobia — como qualquer outro jovem gay —, ter alguns privilégios [me ajudou a] lidar com as coisas que faço, a ter estrutura de personalidade que tenho hoje para lidar com preconceito, poder militar… Se eu fosse mulher, não sei se eu teria a mesma facilidade

Foi um privilégio nesse sentido. De ser uma pessoa mais impositiva, mais ousada. Isto é: “autorizado” — entre aspas — de certa forma pela sociedade.

Falando sobre escolhas profissionais: o que te motivou a estudar psicologia e, posteriormente, trabalhar nessa área com o público LGBTQIAPN+?
Foram vários motivos, vários encontros. Comecei psicologia um pouco mais tarde, aos 24 anos, e terminei aos 29. Não havia sido minha primeira escolha profissional. 

Comecei [a estudar] administração de empresas e parei na metade justamente porque foi o momento no qual notei que estava em uma área que não me chamava tanto a atenção. Quando escolhi a psicologia, percebi que realmente era o que eu queria, por diversos fatores. 

Sempre tive uma ligação muito grande com a parte de humanas, sempre quis entender melhor a mente humana, por que as pessoas se comportam de tais maneiras, agem de tais formas 

E, ao mesmo tempo, sempre tive a ideia de fazer algum trabalho que envolvesse a comunidade de LGBTQIAPN+. Desde que comecei a faculdade de psicologia, eu tinha certeza que queria ir para a clínica voltada a esse público. Inclusive, todo o meu trabalho acadêmico foi nesse sentido.

E, a partir disso, como surgiu a ideia de criar uma empresa que conecta serviços de psicologia por meio da tecnologia? Que tipo de dificuldades você enfrentou?
A ideia surgiu para garantir ética e acolhimento ao público LGBT. Porque assim como a gente sofre bullying, preconceitos e agressões fora da clínica, as pessoas me relatam muita dificuldade em procurar profissionais de psicologia por conta da falta de ética e de acolhimento de profissionais. 

Falta de preparação, mesmo, para o atendimento desse público… Onde a gente tem a “cura gay”, a “cura trans” de forma mais descarada — e que é uma terapia sexual e de reversão de gênero. 

Muitas vezes tem um preconceito mais velado. É aquela pessoa que não faz “cura gay” com paciente, mas fala que a pessoa bissexual está em dúvida porque um dia vai escolher um gênero com o qual se identifica mais; ou fala para a pessoa trans que ela não precisa sair daquele jeito na rua… Entre outras coisas absurdas

Então, a ideia de criar Rainbow foi garantir acolhimento e ética para esse público em geral. 

E a Rainbow, antes de ser uma empresa de psicologia, nada mais é que uma sacada de marketing: a criação de um nicho de mercado. Foi identificar um público que tinha um déficit de um serviço e a tendência dessa necessidade.

Como foi o início, em termos mais práticos?
Em 2018, criei um coletivo durante uma noite de insônia. Sentei na frente do computador e falei: “Preciso criar alguma coisa para o público LGBT”. Foi uma explosão de ideias naquela noite. 

Durante meu primeiro ano de formado, fiquei com dois pacientes. Não havia atendimento online até então. Não era tão simples como é hoje. Era só presencial.

E aí sentei na frente do computador, e na época, usei um recurso muito mais rudimentar, muito mais básico, que foi um criador de sites. Daí nasceu o primeiro site da Rainbow. Às onze horas da manhã do dia seguinte já tinha o primeiro paciente

Pensei: “Parece que isso aqui pode dar certo…”. Então, comecei a modelar melhor o negócio, a aperfeiçoar mais para chegar ao que é hoje. 

No primeiro momento, foi uma iniciativa para eu receber pacientes. Era uma coisa individual — e cresceu tão rápido que tive que transbordar esses atendimentos para os meus colegas. Chamei alguns e esse coletivo começou a aumentar.

Cheguei a ter 20, 30 profissionais enquanto era um coletivo. Ou seja, já era um trabalho informal, só não cobrava uma assinatura por isso. E meus próprios colegas falavam: “Meu Deus, você tem que cobrar, isso tem que virar um serviço”.

Você não recebia nada?
Não recebia para fazer o intermédio. Encaminhava os pacientes como uma filosofia de trabalho mesmo, não tinha foco profissional nisso. Mas os atendimentos eram pagos pelos pacientes aos profissionais. Os que eu atendia pagavam pra mim, e os atendidos por outros profissionais pagavam a eles. 

Nessa época, cheguei a atender três, quatro pacientes novos por semana — o que é algo totalmente incomum em uma clínica de psicologia padrão 

Os psicólogos levam até cinco anos para se estabilizar. Comigo, isso foi muito mais rápido.

Então, a demanda do coletivo cresceu, os colegas insistiram e, daí, você abriu a empresa?
Criei o CNPJ em 2020, em meados da pandemia. Neste momento, passei a oferecer o plano de parceria como é feito hoje. Em outubro, fez três anos que trabalhamos nos moldes atuais.

Então foram dois anos trabalhando como coletivo, fazendo praticamente um trabalho de voluntariado para esses profissionais, passando os pacientes sem cobrar, que eu consegui ter a minha cartela de clientes inicial. 

A maioria esmagadora dos profissionais do coletivo veio comigo após a abertura da empresa e continua até hoje.

Quais são as maiores demandas dos pacientes que vocês atendem? E em qual contexto se encontram essas pessoas ao procurar a Rainbow?
Quando abri o coletivo, as questões eram mais relativas à sexualidade, tanto gays quanto lésbicas. Hoje, a ampla maioria busca um processo de transição de gênero.

As queixas centrais variam bastante. Há questões sobre aceitação; outros chegam com diagnóstico de depressão, de ansiedade; mas a maior parte vem por conta da temática LGBTQIAPN+. 

Você acha que este público chega mais fragilizado pela história de vida e pelo preconceito que sofre?
Pela história de vida também, e muitos já passaram por profissionais antiéticos. Isso dificulta o processo terapêutico.

Recebemos, basicamente toda semana, pacientes que vieram de profissionais que agiam sem ética, sem acolhimento, sem conhecimento da questão e acabavam julgando, colocando a moral pessoal no atendimento — inclusive o envolvimento da moral religiosa 

É importantíssimo mencionar. Em fevereiro de 2022, o caso de uma psicóloga chamada Rosângela Alves ganhou a imprensa. Ela teve o registro profissional cassado por oferecer a “cura gay”. Isso pode causar danos irreversíveis na personalidade.

Quais foram as principais transformações pessoais que você viveu desde o começo do coletivo? E como você vê a sua contribuição para a comunidade LGBTQIAPN+?
Me ajudou muito enquanto pessoa para que eu tivesse também mais estrutura para lidar com o preconceito. 

Porque o que a gente aprende na clínica psicológica, e que é também o fazemos com os pacientes, é a deixar o preconceito lá fora: aprender que o preconceito é do outro.

Nós não sofremos homofobia porque somos gays. Nós sofremos homofobia porque o outro ali fora foi homofóbico. É o que a psicologia trouxe para minha vida pessoal e é o que eu replico nos atendimentos, nos trabalhos clínicos e nos grupos que supervisiono. É ajudar as pessoas a deixarem o preconceito lá fora

Essa é a principal ferramenta. E é isso que é um fator de transformação na vida das pessoas: entender que não é culpa delas ser — entre aspas — “diferente”; mas sim que o outro é que é preconceituoso.

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