O mercado de arte contemporânea vive um dilema paradoxal. Marchands e artistas desejam alcançar um público consumidor (bem) maior. Porém, a mera ideia de pôr obras de arte para venda direta em canais online pode causar arrepios.
Estamos falando de produtos cujo valor depende fortemente da impressão de qualidade despertada no consumidor; a aura de exclusividade, que pode ser traduzida por fetiche (inclusive na acepção marxista, o fetiche da mercadoria), é central aqui. O marketplace, nesse caso, poderia jogar contra quem deveria beneficiar, ao supostamente vulgarizar o que ali se vende.
Para galeristas, manter canais de venda em seus próprios sites pode parecer pouco respeitoso, como que a conspurcar a pureza da obra de arte. Por outro lado, ir para um marketplace – em que é imperioso divulgar o preço da obra – seria a desglamurização total.
Mesmo assim, a ex-representante da casa de leilões Christie’s no Brasil, Lizandra Alvim, o galerista Carlos Dale e o empresário do mercado financeiro Gustavo Ribas tiveram a ideia de montar um marketplace de obras de arte – e efetivamente o fizeram, em 2017.
Hoje já sem Gustavo, a Blombô – o nome é um tributo a um sítio arqueológico sul-africano em que foi encontrado um registro ancestral de arte pictórica – comercializa nomes prestigiosos da arte brasileira como Nelson Leirner, Tunga, Cildo Meireles e a novíssima Nina Pandolfo, que em janeiro de 2024 concluiu exposição individual na galeria Zipper, em São Paulo.
Nomes consagrados e bem mais previsíveis da arte moderna, cujas obras circulam fartamente em leilões desde tempos imemoriais, como Di Cavalcanti, Alfredo Volpi e Lasar Segall, também aparecem, ao lado de trabalhos de alguns raros artistas estrangeiros como Andy Warhol e o enfant terrible Banksy.
A Blombô mistura em sua plataforma, sem distinção, os chamados mercados primário e secundário de arte. De modo geral, mercado primário é formado pelas galerias e artistas que elas representam; secundário, aquele abastecido pelos colecionadores que buscam vender seus acervos. Um mesmo artista pode estar nos dois “hemisférios”.
Segundo Lizandra Alvim, que recebeu o Draft na sede da Blombô, na avenida Cidade Jardim, em São Paulo, são duas a três obras comercializadas diariamente, e o maior movimento de vendas vem do mercado secundário.
“Há um colecionador que tem cerca de 1 mil obras na plataforma. Ele e alguns outros promovem seus acervos, mexem nos preços, dão rotatividade ao site.”
Esse tipo de ação, conta ela, é raro por parte dos galeristas, que parecem “esquecer” seus artistas lá.
“Acho que falta esse empenho por parte das galerias. Não adianta só jogar a obra lá dentro e esquecer. Se fizessem essa rotatividade com mais frequência, talvez entendessem que as vendas também seriam mais frequentes. Quem entra no site quer ver novidade, não a mesma obra de sempre”
Embora Lizandra diga que cofundou o site sem expectativas nem previsões, o modelo de negócios sempre deu grande importância às galerias, com seus nomes como principal critério de busca no marketplace. Hoje a busca é predominantemente pelos nomes dos artistas, restando uma aba, bem mais discreta, a relacionar os “expositores”.
Segundo a empreendedora, no começo eram menos de 30 galerias – hoje o número teria triplicado. A taxa de remuneração da Blombô, exclusivamente sobre comercialização, passou de 6%, no lançamento, há sete anos, para 20% a 25% agora.
Se o aumento significativo da comissão sobre vendas pode significar sucesso do modelo e entendimento por parte de atores do mercado de que o marketplace faz sentido, o começo parecia definitivamente pouco promissor.
Lizandra diz que o que mais ouvia de seus céticos interlocutores era: “Ninguém vai querer comprar uma obra de arte antes de vê-la”.
Ocorre que, quando representante da Christie’s no Brasil, ela arrebanhava compradores de obras de arte de leilões que aconteciam necessariamente fora do Brasil, ora em Nova York, ora em Londres. Consumidores do Rio e de São Paulo, cidades em que eles mais se concentravam, jamais viam com antecedência, portanto, a obra que logo teriam em casa.
“O comprador pensava: ‘Se acontecer algo, a Christie’s me dá respaldo, é uma marca forte’. Eu precisei criar essa confiança aqui na Blombô, e acho que ela veio quando as pessoas começaram a ver que havia uma curadoria, um critério para a seleção de obras para o marketplace”
Além da triagem de um “casting” mais relevante, também serviu para criar essa confiança, supõe Lizandra, o cuidado com a informação em torno da obra de arte. Detalhes sobre o estado físico das peças e fotos ajudam na definição de compra.
Para isso, a Blombô realiza uma providência óbvia, mas muitas vezes desprezada pelos marchands, que é fotografar os acervos. Peças que passam anos e anos em reservas técnicas e salas fechadas ganham nova vida no marketplace, que tem um profissional dedicado para cuidar da exibição virtual das obras.
E a temida “popularização”? O termo parece extravagante demais para o léxico do mundinho das artes visuais, mas, com peças que podem custar menos de 10 mil reais abrigadas no marketplace sob a aba “oportunidades do acervo”, Lizandra imagina ter transformado compradores de objetos decorativos de “lojas de shopping” em colecionadores iniciantes.
Ainda que nas tais “oportunidades” seja difícil encontrar pinturas, que são obras únicas, há ali ótimos múltiplos: litogravuras de Burle Marx, xilogravuras de Di Cavalcanti e um papel do contemporâneo e um dia bastante hypado Daniel Senise, para ficar em alguns exemplos.
Os compradores, predominantemente na faixa dos 25 a 45 anos, vêm de estados fora do eixo basicão Rio-São Paulo.
“São pessoas que você nem imagina, de cidades de que eu nunca ouvi falar; tem do Paraná, Goiás, do Nordeste também. Acho que em vez de ir a um shopping comprar alguma coisa decorativa, sem nome de artista por trás, elas optam por ter uma gravura de um artista bacana. A Blombô vem mostrando que é possível ter algo legal por um preço acessível”
Embora não estivesse nos planos iniciais, a plataforma passou a realizar leilões online sistematicamente, e incrementá-los é a meta principal do planejamento estratégico de 2024.
Este ano passam a ser três, em média, por mês, um para obras de arte contemporâneas e modernas mais prestigiosas – chamado internamente de “leilão A”; outro para peças de menor valor; e um terceiro para vinhos, que, para surpresa de Lizandra, mostrou-se outro mercado relevante, com colecionadores desfazendo-se de suas adegas de tempos em tempos.
Um especialista em vinhos, Luiz Gastão Bolonhez, foi chamado para olhar os acervos que passaram a ser oferecidos à Blombô, e é ele que anima os leilões, acrescentando talento de storyteller a esses eventos que, por conta disso, estendem-se por mais de duas horas.
Lizandra diz que a demanda por leilões surgiu espontaneamente, de colecionadores que não tinham tempo ou vontade para manter obras no marketplace e que, por isso, dispunham-se a baratear o preço final do ativo. Buscavam dinheiro rápido.
Não são muitos os casos, segundo a fundadora, mas há situações em que obras da plataforma saem temporariamente do marketplace para integrar leilões, quando há alguma lacuna a preencher; e outras situações que, ao contrário, peças saem do leilão, caso não tenham sido vendidas, para integrar a plataforma, agora com preços mais altos.
De qualquer forma, perguntada pelo repórter, Lizandra não vê canibalização nesse movimento. Os tíquetes médios de leilão e marketplace são distintos: 50 mil reais para o primeiro, 20 mil reais para a plataforma.
Ainda que os leilões sejam virtuais, Lizandra decidiu desencavar um expediente bastante old school do setor. Apresentar, em exposição, as obras que irão em dias ou horas ao martelo (ou seu equivalente online). Para isso utiliza espaços de uma casa que poderia perfeitamente passar por galeria, mas que abriga também boa parte dos funcionários da Blombô, para organizar mostras rotativas dos leilões vindouros.
Este repórter sentou-se numa poltrona Mole entre obras de dois de seus heróis das artes visuais, Arcângelo Ianelli e Nelson Leirner, enquanto aguardava o início da entrevista. Um “borboletário” de Vik Muniz também reclamava atenção.
Curiosamente, ao dar relevo na Blombô para os leilões, Lizandra volta a se conectar com o que sempre fez na vida. Formada em design industrial pelo Mackenzie (São Paulo), seu primeiro e único emprego antes de entrar na Christie’s foi na casa de leilões – obviamente presenciais – de Renato Magalhães Gouvêa, figura lendária das artes visuais brasileiras, considerado um dos responsáveis pela profissionalização do segmento.
“Eram leilões maravilhosos na casa da avenida Europa, com uísque, catálogo – algo que não faz sentido hoje. Agora, o pessoal dá seus lances de casa, pelo celular, no meio do jantar”
Lizandra passou a trabalhar na Renato Magalhães Gouvêa depois de mediar a passagem de todo o acervo de Neide Bonfiglioli, avó do primo de seu marido, recém-falecida, para a casa de leilões.
Foram cinco dias de leilão em 1995, estima ela, com sucesso absoluto. Havia telas de Di Cavalcanti e Cândido Portinari, além de porcelanas e joalheria. “Vendemos a casa inteira”, diz.
Aqueles eventos grandiosos hoje pertencem ao passado. Os leilões online vieram para ficar, mesmo que de vez em quando os compradores ainda se atrapalhem com a tecnologia.
“Pode ter algum arrependimento, às vezes por conta de delay na transmissão, e o interessado diz que o que ele queria comprar era na verdade a peça seguinte, não a anterior”, afirma Lizandra. “Mas isso, quando acontece, é desprezível, não interfere no faturamento final.”
“Como pode ser grande um povo cujos artistas não têm sequer material para trabalhar?” Para responder a essa queixa histórica, dois pintores se uniram e fundaram a Joules & Joules, que produz tinta a óleo de qualidade a preço justo.
O fim do casamento não foi o fim da sociedade: Marina Bortoluzzi e Marcelo Pimentel repensaram suas funções na empresa, tiraram o holofote do perfil do Instagram e alavancaram o faturamento investindo na atuação em projetos e eventos nacionais e internacionais.
Daniela Kohl Schlochauer e Georgia Lobacheff já levaram 550 meninas e meninos (incluindo 495 alunos de uma escola em Paraisópolis) para conhecer de perto acervos e exposições da capital paulista, com passeios customizados à faixa etária e à realidade de cada grupo.