Quais desses ingredientes são mais familiares a você? Blueberry e pitaya? Ou carqueja e catuaba?
Enquanto as duas frutas importadas podem ser achadas em quase qualquer supermercado, a carqueja e a catuaba caíram no desconhecimento, sobretudo nos grandes centros urbanos, mas são parte de uma cultura brasileiríssima: as garrafadas, tradição da medicina popular que mistura ervas, cascas, raízes, flores ou frutas com álcool para retirar delas os princípios ativos que curam.
(A catuaba, por exemplo, teria a propriedade de despertar a libido, daí seu uso na Catuaba Selvagem — que, atenção, não tem nada a ver com as garrafadas: é uma bebida industrializada vendida numa garrafa de plástico.)
A jornalista, mixologista e pesquisadora Néli Pereira, 43, decidiu resgatar essas plantas do limbo. Ao longo de dez anos, ela se lançou em uma pesquisa e foi a campo conversar com erveiras e raizeiras, e conhecer as garrafadas para, depois, transformar esse conhecimento em coquetéis — e num livro.
“O que mais me chamou a atenção foi a quantidade de ingredientes que estavam restritos ao universo da medicina que a gente até já tinha ouvido falar, mas não sabia o sabor”
O resultado da pesquisa está em Da Botica ao boteco — Plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira, publicado em 2022 pela Companhia das Letras, e pode ser conferido ao vivo na forma dos drinques autorais que Néli prepara no Espaço Zebra, misto de bar e galeria de arte que ela mantém em São Paulo com o marido, o artista plástico e diretor de cinema Renato Larini.
O Espaço Zebra fica embaixo de um prédio residencial no Bixiga. São dois pavimentos. Em cima há uma galeria, que expõe obras de Renato. O bar ocupa o subsolo, com capacidade para 50 pessoas.
Ao todo, a carta tem 15 drinques autorais (com preços entre 18 e 45 reais) e se renova com frequência, dependendo da disponibilidade dos ingredientes; além disso, Néli troca cerca de quatro receitas por semana, para dar uma renovada.
A catuaba, por exemplo, aparece no drinque Catatônica, com licor de catuaba e água tônica. No Carqueja Spritz, a erva que dá nome ao coquetel é misturada com vermute, Aperol e água com gás. O Panache do Davi (homenagem a Davi Kopenawa, xamã, escritor e líder político Ianomâmi, autor de A Queda do Céu) leva cogumelos ianomâmis e mix de vermutes.
Segundo Néli, pessoas às vezes viram a cara para esses ingredientes por seu gosto amargo, comum à maioria. O que ela fez foi distinguir os amargores para usar em coquetéis. A carqueja é muito mais adstringente; a catuaba mais tânica e terrosa; o milome (planta trepadeira de folhas herbáceas) é levemente ácido.
Natural de Curitiba, Néli cresceu na umbanda, por meio de uma tia, e tinha uma avó que preparava xaropes caseiros. Ainda hoje, ela frequenta a umbanda e o candomblé, e cultiva o interesse pelas coisas do Brasil — e por bebidas.
Durante cinco anos, a jornalista viveu em Londres, atuando na BBC. Ao voltar ao Brasil, em 2009, se fixou em São Paulo e trabalhou na BandNews. Néli ainda vivia o dia a dia de redação quando, em 2012, inaugurou o Espaço Zebra, onde garimpava cervejas artesanais.
Até que resolveu preparar coquetéis clássicos e servir aos clientes, como fazia em casa com os amigos:
“Gostei muito de atender com os drinques — e o ticket médio ainda aumentou. Ou seja, dava mais dinheiro fazer drinque do que vender só cerveja”
Um dia, Néli entrou num boteco na Zona Cerealista, em São Paulo, e encontrou várias infusões de plantas com cachaças. Provou todas, comprou as primeiras ervas no próprio mercado e começou a testar as infusões em seu bar.
Pesquisando na internet, ela descobriu a coquetelaria apotecária, movimento surgido nos Estados Unidos em 2008 com bares que usavam técnicas e referências de antigos boticários, os farmacêuticos de antigamente.
Com a curiosidade atiçada, Néli se debruçou sobre o cenário da coquetelaria brasileira e entendeu que os ingredientes locais eram pouco usados por aqui:
“Existia um espaço para entrevistar as raizeiras e benzedeiras e colocar a garrafada no centro da pesquisa, falando delas de um jeito que ninguém tinha falado ainda.”
Feiras, mercados e viagens (não necessariamente para lugares distantes) foram seu campo de pesquisa. As garrafadas ainda são muito presentes nas regiões Norte e Nordeste, mas mesmo em São Paulo dá para encontrá-las em algumas feiras livres e camelôs.
Mesmo assim, ela andou um pouco por aí, sempre pagando as despesas do próprio bolso. Em Belém, por exemplo, visitou o herbário de plantas medicinais da região amazônica, na Universidade Estadual do Pará.
Em Paranapiacaba (SP), Néli pôde experimentar frutas da Mata Atlântica, como o araçá; na aldeia Awa Porungawa Dju, em Peruíbe (SP), fez uma imersão de três dias sobre fitoterapia indígena e conheceu a carqueja, uma planta nativa do Sul e do Sudeste.
“A gente não precisa viajar o Brasil [todo] para conhecer essas tradições porque elas estão na esquina de casa. O que fiz foi botar essa lente do interesse pelas coisas do país e sair conversando com as pessoas, que é outra coisa que a gente esqueceu de fazer. Foi uma pesquisa de resgatar essa história oral do Brasil — e encontrar Brasil onde quer que fosse”
O segredo era perguntar por quem fazia os remédios populares. A partir deste recorte da medicina, ela descobria os ingredientes, experimentava e levava para o balcão do bar.
“Não adiantava procurar as bebidas. Ainda que nos botecos eu fosse encontrar uma pinguinha infusionada com alguma coisa, era de gente que fazia remédio que eu estava atrás, porque essas pessoas sabiam dos ingredientes que poderiam ser trazidos para a coquetelaria.”
As descobertas abastecem a carta de coquetéis do Espaço Zebra, onde Néli montou um herbário com mais de 50 infusões usadas na elaboração dos drinques.
Aos poucos, foi criando uma rede de fornecedores responsáveis e, hoje, mantém parcerias com o Instituto Socioambiental e Instituto Auá, além de alguns fornecedores diretos que ela garimpa por aí.
“É um trabalho que se relaciona com a sustentabilidade e a floresta em pé. É preciso fazer isso para que seja sustentável e a gente continue tendo esses produtos e ajudando a sustentar os produtores”
O cuidado é sempre buscar de produtores que fazem o manejo correto das plantas porque são ingredientes relacionados com a sociobiodiversidade brasileira.
Alguns, como a catuaba, estão perto do risco de extinção. A planta é considerada vulnerável tanto pela exploração extrativista predatória da indústria farmacêutica como, em menor escala, pela população que não faz o manejo adequado.
Ao deixar de vez o jornalismo, em 2016, para se dedicar ao universo das bebidas, Néli sentiu as dificuldades de uma transição de carreira. Segundo ela, o mercado ainda não confiava nas suas habilidades de bartender (que ela aprimorou com alguns cursos de mixologia).
O jogo virou na pandemia, quando o Espaço Zebra precisou fechar as portas por causa das medidas de isolamento e a empreendedora resolveu fazer lives no Instagram, preparando drinques e falando sobre a pesquisa.
“Com as lives, as marcas entenderam que eu tinha uma pesquisa e um público, conseguia falar sobre bebidas e desenvolver receitas. Foi aí que comecei a trabalhar como consultora – e pagar as contas com isso”
Hoje, Néli é “embaixadora” da Tônica Antarctica e cria todas as receitas que marca usa em eventos (como, por exemplo, o Baile da Vogue), publicadas no Instagram e no site; também orienta qualquer atividade da empresa relacionada à mixologia.
Ela desempenha a mesma função junto ao bourbon Maker’s Mark (dando um toque de brasilidade aos drinques preparados com o destinado estadunidense), e afirma ainda trabalhar, como consultora, para outras marcas, que não revela por questões contratuais.
Embora trabalhe com bebidas diariamente, Néli passa um período do ano sem beber.
Isso começou cinco anos atrás, quando em certo momento ela se tocou que não lembrava mais da última vez em que tinha passado um dia inteiro sem pôr uma gota de álcool na boca.
Assim, Néli instituiu que a cada três meses ficaria um mês inteiro sem beber. Sentiu diferenças no sono, na pele e em sua qualidade de vida, o que inspirou uma reflexão:
“Percebi que estava trabalhando com uma substância que altera as pessoas e era minha responsabilidade falar sobre isso… O consumo responsável não é só um discurso, mas um negócio, porque todo mundo quer consumidores saudáveis para continuar bebendo”
Hoje, o Espaço Zebra tem uma carta de drinques sem álcool criados por ela, como o Atlântica, que mistura calda de araçá, manjericão, vinagre balsâmico e água tônica.
Néli também leva a pauta do consumo responsável para sua frente de consultoria. Até porque, segundo ela, o mercado de wellness e das bebidas funcionais deve ganhar força nos próximos anos — e as marcas precisam estar preparadas.
Da botica ao boteco, o livro de Néli, conta a história dos drinques e das bebidas desde sua origem ancestral, ligada à medicina, e as transformações que foram ocorrendo até chegarem ao bar.
A obra resgata também a história das plantas tradicionais do Brasil e do seu uso em garrafadas para curar todos os tipos de males. Tudo entremeado com dezenas de receitas, que fazem uso das plantas em drinques ousados.
“Com o livro, as pessoas voltam pra mim pelo Instagram ou quando me encontram, falando de outros ingredientes, mais um sabor, uma planta que ela nunca tinha prestado atenção que poderia ser trazido para os drinques”
Hoje, a imensa maioria dos bares brasileiros ainda se mostra preguiçosa na hora de montar suas cartas, se deixando pautar pela indústria de destilados e pelos drinques clássicos e/ou na moda (pense em Moscow Mule, Negroni, Aperol Spritz…)
A pesquisa de Néli ajuda a desbravar novas possibilidades para o mercado e a indústria, que podem se valer de novos sabores. No Espaço Zebra, ela mostra que fazer coquetéis autorais com ingredientes brasileiros é uma boa proposta — e uma tendência, acredita, a ser assimilada por mais bartenders.
Uma barreira a ser vencida, segundo ela, é a do preconceito contra o que é brasileiro. Néli conta que já foi questionada sobre como poderia “cobrar tanto” por um drinque com carqueja… E vê no exemplo da gastronomia um norte:
“Há um tempo atrás, as pessoas não pagavam em um restaurante de comida brasileira o mesmo que pagavam em um restaurante francês… Hoje, elas entendem que a comida brasileira pode estar no boteco ou no restaurante. Devagar, vamos entendendo que isso é possível”
Para essa brasilidade deslanchar, o que falta hoje é mais pesquisa, mais profissionais trabalhando de forma autoral com os ingredientes nacionais e mais gente se interessando pelas coisas do Brasil.
“Ainda vamos nos surpreender com as belezas daqui porque, de fato, tudo muda se a gente vencer a barreira que os brasileiros têm com o país. E entender que, com isso, o país fica mais rico, as pessoas ficam mais ricas e a economia, mais forte.”
O bar onde ervas da medicina tradicional viram coquetéis. A grife que transforma a arte produzida por pacientes bipolares em estampas exclusivas. Confira a nossa retrospectiva com alguns dos melhores negócios criativos publicados em 2023.
Ligia Aquino era a paciente; Mayara Boaretto, a obstetriz e herbalista. Hoje, as duas são sócias à frente da Iamaní, que cria blends de chás orgânicos para ajudar na amamentação, na TPM e na menopausa (e a melhorar o sono e o metabolismo).
Nos tempos de escola, Mathias Lessmann e Miguel Arasaki surfavam sempre que podiam. Agora, à frente da Single Fin, na Barra do Sahy, eles produzem gim artesanal e desafiam o paradigma de que o litoral só vive de turismo.