Mesmo quem nunca pôs os pés na capital paulista conhece de nome (e má fama) os rios Tietê e Pinheiros.
O que a maioria das pessoas — inclusive os próprios paulistanos — não sabe é que debaixo de muitas ruas e avenidas de São Paulo correm centenas de rios e riachos que, em algum momento do desenvolvimento urbano, foram canalizados.
Para o arquiteto e urbanista José Bueno, esses rios foram enterrados vivos com o objetivo de limpar a cidade, tê-la sob controle e permitir o tráfego mais livre dos carros.
“Estamos sofrendo com o aquecimento, a desertificação, a verticalização e o trânsito. E aceitamos essa percepção de que os rios são um problema urbano. Mas a verdade é que rio bom é rio aberto, limpo, livre — não é rio enterrado”
Para mostrar que estes rios existem e estão vivos, José e o geógrafo e educador Luiz de Campos Júnior criaram o Rios e Ruas, um negócio de impacto que busca sensibilizar as pessoas sobre a importância da convivência entre a vida urbana e estas águas.
“A alma do Rios e Ruas é transformar a cidade a partir da transformação do nível de percepção das pessoas”, diz José.
Uma das primeiras ações do Rios e Ruas, ainda em 2010, foi a oficina “Cidade Invisível” no Impact Hub, convidando as pessoas para ver uma cidade não percebida.
Segundo José, naquele momento eles fizeram “tanto mistério” em torno do tema que a oficina foi “um fracasso total” e não teve sequer um aluno.
Foi pensando sobre esse fracasso, porém, que José e Luiz chegaram ao nome Rios e Ruas, que reflete, segundo eles, o grande objetivo do negócio: promover a coexistência dos rios com a cidade.
“Temos por missão a ideia de promover e inspirar o maior número possível de ações para que milhões de paulistanos e brasileiros descubram, vejam e desejem esses rios lindos e livres.”
José e Luiz tinham sido apresentados por intermédio de um amigo em comum, que identificou ideias convergentes entre os dois.
Graduado pela FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), José é criador do Instituto Harmonia, que atua com educação, transformação cultural e sustentabilidade. Na época, ele estava criando um cursinho de experiências com o intuito de preparar jovens para os desafios da vida.
Geógrafo, Luiz já pesquisava os rios de São Paulo – e inspirou José a pensar que uma expedição pelos rios enterrados da cidade de São Paulo poderia ser uma destas experiências.
Assim, semanas depois de se conhecerem em um café, os dois saíram com um mapa na mão em busca de sinais de algum rio próximo à casa de José na região do Butantã, Zona Oeste de São Paulo. Viram água correndo pela guia, ouviram barulho de pássaro, encontraram afloramentos – como nascentes – e taiobas (plantas indicativas de água por perto), todos sinais de que havia um rio ali.
Era o riacho Iquiririm – assim batizado por eles em referência a uma rua que acompanha parcialmente seu percurso, nas cercanias da Cidade Universitária. (Eles contam essa história com mais detalhes em um episódio do podcast Espaço Sonoro, da Cultura FM.)
Aquela hoje é considerada a primeira expedição do Rios e Ruas, que já realizou mais de 80 em todas as regiões da cidade. Levar as pessoas para perceberem os sinais dos rios é uma das principais formas de sensibilizá-las para a existência destas águas. Porque os rios podem até estar enterrados — mas seguem vivos.
“Esse é um dos nossos mantras”, diz José, e prossegue:
“Enterramos estes rios vivos, o que é muita injustiça: eles foram condenados à escuridão e ao tamponamento sem ter feito nada. A boa notícia é que se abrirmos, esses rios voltam e devolvem toda a sua natureza generosa para a cidade”
Embora a prefeitura de São Paulo contabilize cerca de 300 rios na cidade, um levantamento feito pelo Rios e Ruas a partir da pesquisa de Luiz em diversos mapas, esse número pode chegar a 800.
Segundo José, a prefeitura ignora uma porção de afluentes e pequenos riachos, incluindo o Iquiririm, aquele que os dois encontraram na primeira expedição — e cuja nascente, graças aos esforços dos dois, deixou de ser uma área de entulho para se tornar um local sinalizado e visível da rua.
Os sócios do Rios e Ruas acreditam que 80% dos rios paulistanos estão enterrados sob o asfalto, sendo ignorados pela população.
De vez em quando, porém, esses córregos secretos dão sinal de vida, e da pior forma possível. Basta ver as inundações decorrentes dos aguaceiros que volta e meia castigam São Paulo. José explica:
“O Luiz fez um trabalho de cruzar as inundações de 2013 e 2014 com o mapa da cidade e todas aconteceram no curso de rio. Então, encheu porque o rio transbordou. A cheia pertence à natureza do rio. Mas a gente canalizou, ocupou as várzeas e o rio não tem mais pra onde crescer”
O sonho de José e Luiz, claro, é que os rios da cidade sejam todos abertos — e que parques alagáveis sejam construídos para dar vazão às águas na época das cheias.
A renaturalização dos rios já é realidade em países como Portugal e Alemanha. Porém, exige, primeiro, um trabalho de sensibilização.
Esse é, justamente, o foco em que o Rios e Ruas atua, seja junto a escolas ou empresas (incluindo Pwc, HSBC e Sulamérica). José afirma:
“Primeiro, estamos abrindo a cabeça e o coração das pessoas. Se hoje eu abrir um rio na Avenida Corifeu de Azevedo Marques [importante via da Zona Oeste de São Paulo], vou levar paulada. Então, precisa haver uma sensibilização massiva”
Além das expedições, José e Luiz também oferecem oficinas, cursos, palestras e exposições.
Entre essas mostras temporárias está a “Rios DesCobertos – Dos Jerivás aos Pinheiros”, que levou um mapa interativo com a identificação desses rios ao Sesc Interlagos (e a outras unidades, anteriormente), entre abril e dezembro de 2023.
Outra exposição recente foi a “Rios e Ruas”, que ocupou o Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, de outubro de 2023 a janeiro de 2024.
Durante mais de uma década, a Rios e Ruas operou de forma quase intuitiva, inclusive usando “emprestado” o CNPJ do Instituto Harmonia.
Depois de passar pela pandemia com faturamento zero, os sócios emplacaram um livro, Rios e Ruas, publicado (de forma independente) com o patrocínio da Sabesp, a companhia de saneamento básico do Estado de São Paulo.
A obra, escrita pelo jornalista João Prata, foi distribuída para os participantes do TEDx Jurubatuba “Regenerar é Preciso”, que teve José como o curador das dez palestras.
“Foi um marco que fechou esses 12 anos e começou a dar início a ideia de que se a gente não se organizar, a gente morre”
A ocasião serviu também como um divisor de águas (com trocadilho) para ajuste de rota para o negócio de impacto. Os sócios sentiam que era hora de organizar a Rios e Ruas de maneira mais estruturada.
A medida era necessária para ampliar a percepção de valor do trabalho, melhorar o faturamento (que hoje oscila em torno de 20 mil reais por mês) e aumentar o impacto do negócio.
Em 2023, a dupla se inscreveu em um edital da Bemtevi e foi um dos dez selecionados para uma mentoria de nove meses.
O processo, dizem, está ajudando a estruturar o Rios e Ruas a partir de aprendizados sobre teoria de mudança, resultados, impacto, equipe, planejamento financeiro e modelo de negócio.
“Vamos entrar em uma fase de parar de esperar o telefone tocar e de chegar mensagem no Instagram para começar a ser mais proativo nessa oferta do que a gente faz – que continua sendo relevante”
A mentoria está no meio do caminho. A expectativa é que, ao final dessa jornada, além de uma estrutura organizacional e um CNPJ próprios, a Rios e Ruas esteja pronto para ficar cara a cara com investidores que enxerguem valor no projeto.
“Não acho que vai ser um modelo de patrocínio, será alguma outra coisa ligada a ESG”, diz José. “O dinheiro está nas empresas, então a gente tem que achar uma forma de sensibilizar esse mercado.”
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Jéssica Cardoso sofreu preconceito ao oferecer seu trabalho de intérprete de Libras como autônoma. Ela então decidiu criar uma rede de profissionais negras para tornar eventos e empresas mais acessíveis e lutar contra o racismo estrutural.