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“Comecei meu letramento racial nos anos 1970 e sobrevivi à ditadura ao criar, com muitos parceiros, o movimento Black Rio”

Cristiani Dias / 14 set 2023
Dom Filó, DJ, produtor cultural, documentarista e diretor da Cultne.TV.
Cristiani Dias - 14 set 2023
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Além de ser um agente de mudança cultural e ícone da resistência negra no Brasil, Dom Filó é um contador de histórias. Carioca de 73 anos, Asfilófio de Oliveira Filho é engenheiro civil, jornalista, DJ, produtor cultural e cine-documentarista, pós-graduado em marketing pela ESPM e com MBA em gestão esportiva pela FGV. 

Nos anos 1970, ele foi um dos muitos mentores do Black Rio, movimento de contracultura que surgiu no Rio de Janeiro (e, desde 2018, é considerado oficialmente como “Patrimônio Cultural Imaterial” da cidade). Inicialmente inspirado pela revolução do funk music norte-americano, o Black Rio misturou ritmos como funk, soul, jazz e samba, teve entre seus expoentes artistas como Tim Maia, Cassiano, Sandra de Sá, Gerson King Combo, Hyldon e Tony Tornado — e teve como seu grande símbolo o álbum Maria Fumaça, da Banda Black Rio, lançado em 1977 (Dom Filó aparece na ficha técnica, como coordenador musical).

Para além da música, Dom Filó é idealizador e fundador do Instituto Cultne, organização que administra o maior acervo virtual de audiovisual de cultura negra da América Latina, que foi gravado pelo próprio Dom Filó e parceiros ao longo de quatro décadas. Desse imenso acervo surgiu o Cultne.TV, plataforma de streaming gratuita que reúne mais de 3 mil horas de conteúdo audiovisual autoral, e que é um registro e memória do Movimento Negro contemporâneo. Ele também é diretor geral do programa Cultne na TV, que é exibido na TV Alerj, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, desde 2015.

Em 2019, Dom Filó palestrou na Universidade de Harvard, durante a Conferência de Estudos Afro-latinos e Americanos do Afro-Latin American Research Institute (ALARI). É Cidadão Honorário da Cidade de Atlanta (EUA) e Benemérito da Paz pelo Comitê Central da Paz – Iniciativa de Solidariedade a Serviços dos Direitos Humanos. 

Em conversa com o Draft, Dom Filó fala sobre sua trajetória, o cenário da arte negra do país e a evolução do Cultne.TV, principal projeto do Instituto. Confira:

 

O acervo Cultne existe há 40 anos, mas seu envolvimento com a produção audiovisual e musical negra é ainda mais antigo. Pode contar um pouco como foi sua entrada nesse universo?
Sou da primeira geração de uma família negra que chegou à universidade. Meu avô era um escravo liberto, e ele desenvolveu uma amizade muito forte com um médico. Nessa época, não existia o médico legista, existia o médico e o prático. Meu avô era esse prático. 

Ele deu nome aos filhos de origem grega, então meus tios eram Aristóteles, o outro Benjamin, e meu pai, Asfilófio. Consequentemente eu tive esse mesmo nome, Asfilófio. Meu filho é Pedro, porque não é justo na atualidade eu seguir essa tradição [risos]. 

Recentemente, descobri a origem desse nome por uma tia. Ela me disse que Asfilófio se deu exatamente pela união desses dois seres humanos, um branco e um negro, um ex-escravizado e um médico. Então o nome é Asfilófio, quer dizer, “as” dois, “filo” amigo, dois amigos fiéis. 

Por conta da profissão, meu pai já cresceu com uma mentalidade diferente. Ele veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, com toda a família, em busca de melhores condições. Sempre sob o comando das matriarcas, o que era uma tradição na minha família.

Aqui no Rio de Janeiro, ele foi mecânico da polícia, mas essa não era a praia dele. Ele tinha uma veia empreendedora muito grande, que eu herdei, e logo fez seu próprio negócio, uma concessionária. 

Por conta disso, ele pôde comprar uma casa, que era simples, mas era mais do que muitos negros conseguiam na época. Ou seja, entrei para a escola tendo uma estrutura familiar, diferente de muitos que moravam na favela e tinham outras dificuldades. 

Sempre estudei em escola pública, fiz o científico e migrei para a área técnica, de mecânica, como meu pai. Fiz universidade paga, pois era impossível para um negro nas minhas condições na época fazer uma pública. 

Meu pai já tinha condições de pagar minha faculdade e fiz engenharia. Mas antes mesmo disso, quando eu era mais novo, meu pai já me dizia que eu teria que dividir minha juventude com o negócio da família, então sempre o ajudei. 

Aos 18 anos, ganhei um carro e pude ir “para o mundo”. Você imagina: um negro naquela época, com um carro zero quilômetro, estudando na escola técnica e partindo para uma universidade…? 

Nessa condição, foi possível obter conhecimento, maior condição de entender o universo em que se vive – que está mais longe do que parece.

Começo então a obter informações que estão fora da seara cultural brasileira, que era rock and roll, Beatles – a música começou a me dar um norte. Esse som, na realidade, não tem nada a ver comigo, meu som é outro, mas eu também não queria só o samba. 

Comecei a ouvir a música negra americana nas rádios e comecei a me interessar muito. Os anos 1970 chegaram, e os negros começaram a se reunir para tocar os discos que vinham de fora. Acabei me especializando naquele som

Fui conhecendo e me aproximando de figuras como Tim Maia, Tony Tornado, Jorge Ben Jor, jogadores de futebol na época – Jairzinho, Paulo César [Caju]… 

Eu ia nas docas do Rio de Janeiro e pelos estivadores tive acesso à estética black americana, que eu conhecia pelos discos e revistas que eles me davam. 

Até então meu visual era careta, tipo Príncipe Danilo. Comecei a usar black power, que ninguém usava, e me vestir como eles. As pessoas achavam que éramos gringos. 

E era um período de ditadura, em que esse afloramento cultural era reprimido… Como foi esse desenrolar do seu entendimento, naquela época de restrições?
Quando você vai buscar informação e começa a entender que aquele racismo é latente, que aquele racismo é para qualquer negro, pobre ou rico – aí o bicho pega. 

Você começa a se revoltar, começa a entender que algo tem que ser feito. Mas esse entendimento veio muito pela adolescência e pela ancestralidade que vai te guiando para que você não sucumba. 

Eu digo isso porque sobrevivi ao processo crítico de ditadura, de enfrentamento, ao criar o movimento Black Rio junto com muitos parceiros. 

Isso foi um enfrentamento muito forte. Naquela época eles sumiam, os negros sumiam. Hoje a mídia te leva a reconhecer esse genocídio total. Mas na época todos eram tratados como comunistas… 

Começo então a ter um letramento racial disruptivo nos anos 1970, quando chego e me reúno com os outros companheiros mais jovens dentro do Renascença Clube, que era o clube dos negros da época. 

Era um local em que todos se reuniam para criar todo um ambiente social, por conta da discriminação que tiveram junto aos grandes clubes. Mesmo sendo advogados, professores, engenheiros etc., eram discriminados, então resolveram fazer esse clube do Rio de Janeiro. Nele, os jovens formaram um núcleo cultural muito forte. 

Lá, fiz teatros e minha cabeça se fez. Só que a minha vibe era música, música é o meu grande lance. Então, além de promover peças e debates de conscientização, também fazíamos bailes. E criamos o baile chamado A Noite do Shaft 

O nome surgiu por conta do filme Shaft, dos anos 1970. Tem três filmes que estão aí na Netflix, e o primeiro, o original, conseguiu chegar no Brasil na época, mesmo com a censura, porque ele vazou. Aí a gente se via na tela enquanto negro e pensava “olha, o cara é um James Bond black do Harlem”, entendeu? Esse cara é o herói. 

Foi um sucesso total. Nas Noites do Shaft, eu mandava mensagens entre as músicas, para conscientização. Dizia que as pessoas precisavam estudar. Não bastava apenas curtir a música, eu queria conscientizar. 

E como foi a transição da sua vivência na música negra para a captação de vídeos que formou o Cultne?
Nos anos 1970 fui para os Estados Unidos, e aí de fato mergulhei na tecnologia. Voltei para o Rio de Janeiro com um equipamento de vídeo e comecei a filmar. Foi assim que surgiu esse imenso arquivo que temos hoje na Cultne. 

Naquela época não se chamava assim. Eram simplesmente duas equipes: eu com um parceiro e outro casal que tinha uma produtora. Saímos filmando, cada um com a sua visão, tudo inerente à questão negra no Rio de Janeiro 

E também quando íamos passar o Carnaval em Salvador, a gente filmava tudo. Por isso só nós temos imagens de blocos afro na Bahia, por exemplo. 

Esse material, dos anos 1980 até os anos 2000, foi filmado todo em VHS. Depois, vieram outros formatos, Super VHS, mini DVs, DVcam, aí foi crescendo. Com o tempo, percebi que isso tudo precisaria ir pro digital, mas sempre foi algo inacessível, por falta de dinheiro, incentivo. 

Em 2001, ganhamos um edital para o governo federal, onde fomos fazer uma cobertura da delegação brasileira em Durban, África do Sul [a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata das Nações Unidas]. 

Esse encontro internacional deu origem às cotas afirmativas das universidades. Aí deu um boom no movimento negro. E nós fomos responsáveis por filmar esse encontro 

Esse material foi filmando em um outro nível técnico, que nos possibilitou que nosso material todo de VHS fosse digitalizado. Mas “entre aspas”, porque foi de VHS para outro VHS – mas isso já melhorou a qualidade de armazenagem.

Em 2008, conseguimos o primeiro recurso público, vamos chamar assim, feito pela Benedita da Silva [então Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do Rio de Janeiro e hoje deputada federal pelo PT-RJ]. E, com esse recurso, a gente começou a digitalização que chegava ao YouTube. 

Na época você só podia subir dez minutos por vez, então foi um processo difícil – hoje é possível subir várias horas de uma vez – mas, com isso garantimos ter o material na nuvem, além do que temos físico 

Com isso fizemos o canal. Conheci um grupo de jovens brancos, que mesmo de origem mais privilegiada que nós, negros, também evoluíram sua consciência e tiveram um letramento racial. 

Eles estão comigo até hoje, e foi com eles que colocamos nos ar esse canal – que se chamava Cultura Negra e, depois, foi diminuído e chamado de Cultne.

Como o projeto se manteve durante esse tempo?
Tínhamos a renda do YouTube, mas ela foi minguando. Hoje é outra métrica para fazer dinheiro lá. 

Esse acervo se tornou a maior referência contemporânea da história do Brasil, dos negros. E por conta da lei 10.639 [que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”] passar diretamente por esse acervo, professores e educadores, quando vão dar aula sobre assuntos raciais, usam como material. 

A Djamila Ribeiro, por exemplo, dá aulas e utiliza nossos vídeos, manda os alunos assistirem. Temos professores apaixonadíssimos que utilizam nosso acervo 

A pandemia fez com que a internet fervesse e uma série de paradigmas foram rompidos. Percebemos que precisamos buscar recursos para melhorar nossa condição, sistematizar e organizar o acervo. Também precisamos terminar de digitalizar o que temos. 

Para isso, precisamos estar organizados, então criamos uma organização. Surgiu em outubro de 2020 o Instituto Cultne. Ele chega para organizar e buscar esses recursos. 

Até aquele momento, recurso público nem pensar – estamos falando da última visão do nosso “amigo” [o ex-presidente Jair Bolsonaro] que foi embora. Então fomos buscar fora. 

Quando apresentamos esse projeto para fundações e organizações internacionais, os caras acham muito louco e dizem que precisam ter um negócio desses… Fechamos parcerias com a Open Society, Fundação Ford etc.

Isso tudo fez com que a gente entendesse que precisávamos mudar a forma de distribuição e seguir a tendência de hoje, que são os streamings, como Netflix e Globoplay. 

Aí resolvemos criar um binômio de memória e entretenimento, e lançamos a plataforma que corresponde ao acervo, que a gente capta direto do YouTube. Só que queríamos expandir mais. Então, hoje nós somos streaming, podcast e televisão ao vivo. 

O conceito é que sempre será gratuito. É feito pela base, não estaríamos confortáveis em cobrar uma assinatura – nem que seja um real – da comunidade. E agora buscamos patrocinadores 

A gente vai buscar as marcas, por conta de fatores como ESG, luta antirracista, necessidade de preservação de um acervo como esse, políticas públicas. A história da Fundação Palmares, que foi totalmente destruída, onde está? Nós temos isso, somos os únicos que temos. 

Precisamos então organizar nossa história, então criamos um modelo de negócio em cima desse conceito. 

E qual o modelo de negócio da Cultne.TV?
Nos enquadramos como ONG, mas nosso modelo é social business. É o modelo que a sociedade, os veículos, entendam esse tipo de negócio. 

Agora, em outubro, estaremos estreando na Samsung TV Plus, são 11 milhões de aparelhos smart. É um mercado. Posso chegar para as marcas e dizer que minha plataforma está disponível para 11 milhões de smart TVs, pois o serviço é de graça 

Futuramente também estará disponível para as TVs smart da LG, que são 6 milhões. 

E agora estamos tentando trazer produções, não necessariamente da Cultne, mas de outros parceiros, negros ou não negros, mas com temática negra, para compor esse conteúdo. Entendemos que será um grande desafio fazer dinheiro – mas também entendemos que estamos desbravando um mercado novo. 

No cinema, qualquer recurso tem que ser buscado com a chancela da Ancine [Agência Nacional do Cinema]. Quando você vai para Ancine enquanto produtora, você precisa de pontuação. Nos associamos àquelas produtoras brancas – quando eu digo “brancas”, digo no sentido de que são privilegiadas, têm uma pontuação alta. E aí, dentro disso temos várias experiências. 

Uma delas é um projeto que começou em 2008, exatamente quando conheci esses parceiros que estão comigo, que é do Gerson King Combo – O Filme, que tem patrocínio da Music Box Brasil, com recursos do fundo setorial. Por quê? A Music Box Brasil tem condição de buscar esses recursos. 

O senhor comentou sobre ESG e como o Cultne pode ser interessante para as empresas. Acha que o setor privado hoje tem uma postura de fato diferente diante desse tipo de projeto?
O ESG não é uma coisa recente. Porém, os CEOs estão chegando agora com toda a garra neste tópico. Primeiro, por uma questão econômica. 

Enquanto empresa, preciso estar bem, preciso dar resposta aos meus acionistas, preciso captar mercado, preciso melhorar o meu marketing, e por aí vai. Mas para isso você tem que ter uma leitura da questão do meio ambiente e da diversidade. E isso passa por questões raciais 

As empresas começam a avaliar: “Quantos negros eu tenho na minha linha de direção? Não tem ninguém? Então precisamos começar a mexer nisso”. E aí começa a aceleração. 

Hoje eles entendem que possuem privilégio, entendem o que é poder de fala. Eles sabem que precisam ter negros no poder de decisão das empresas, formar negros que já estão lá. Esse é um ponto. 

Por outro lado, economicamente falando, quem representamos? Nosso PIB, que é de quase 2 trilhões [de dólares], quanto é comunidade negra? Quanto a comunidade negra consome? 

Hoje, você vê propaganda, novelas em horário nobre, capas de revista, tudo com representatividade negra. A própria Globo teve uma transformação total. Agora são antirracistas. E eu bato palma, porque lá atrás queria encontrar um personagem negro que não fosse escravo, que não fosse empregada doméstica. Hoje, estou vendo essa transformação. 

Do ponto de vista econômico, eles não estão fazendo isso porque são bonzinhos. Estão fazendo isso por causa da grana. É business. Mas o Mano Brown falou uma frase interessante: “É muito, mas é pouco”. Está longe do ideal ainda. Mas está caminhando 

Não tem volta. Quem não estiver nessa, vai perder dinheiro e vai ficar pra trás.  

Falando sobre o cenário cultural de artistas negros, qual a sua visão da atualidade, em comparação com o que o senhor viveu na juventude?
Sempre tem que ter a comparação. Eu chego nesse mundo nos anos 1950, cresço ouvindo rádio. Vejo a televisão em preto e branco virar colorida. E quais eram os grandes nomes da época? Grande Otelo, Jamelão. Todos eles tinham apelido. 

Nos anos 1980, isso começa a mudar. Já não é Jamelão, é Elizeth Cardoso, João Nogueira, Beth Carvalho, entende? Os apelidos começam a ser jogados por terra. Interessante isso. 

Mas para aquele negro artista top da época, era doloroso viver, dentro do solo da branquitude, o seu sucesso. A maioria tinha problemas de saúde mental. O Grande Otelo, aquela estrela máxima, era alcoólatra, infelizmente. Garrincha, também [tinha] problemas com alcoolismo. Simonal termina em uma situação desesperadora… 

A geração, como essa agora, vai buscar suas referências. Assim como eu busquei. Agora a referência é Beyoncé, antes era Michael Jackson. A garotada busca referências nos seus nichos, o letramento pode vir através do hip hop, reggae etc. 

Por conta do acesso à mídia, a autoestima é outra. Antes era zero. Imagina lá na época que meu avô se libertou. A autoestima era baixa. 

Eu também tinha a autoestima baixa, e terminei os anos 1980 com autoestima lá em cima, com movimentos que me influenciaram, como o soul e o charme. E também temos o filho que se desgarrou, que é o funk. 

O funk é o maior exemplo do que você me pergunta. O jovem pode virar uma referência para sua própria comunidade. Ele pode ser uma estrela 

Na minha época você só podia ser jogador de futebol, era um funil pequeno. Ou para ser cantor precisava passar por uma gravadora… Agora, o garoto vai ali na casa dele, monta uma base, faz sua música, toca no baile, um mês depois ele viraliza. 

Então hoje a massa artística negra é mais possível. O que precisamos pensar é sua sustentação. Esse é o grande lance: como sustentar esse processo todo a partir da veia artística.

O senhor mencionou o ex-presidente Jair Bolsonaro e o governo que passou. Como foi esse período para o senhor, que vivenciou a ditadura (1964-1985)? Como foi observar esse boom recente da ultradireita, com um presidente que sempre foi claramente a favor do regime?
O período foi interessante. Olhando lá trás, que maluquice, quando a gente chegava na gringa, as pessoas achavam que a capital do Brasil era Buenos Aires. Não existia Brasil. E aqui era uma “democracia racial”. 

Acreditavam que em 100 anos não existiriam mais negros no Brasil. Ia se “embranquecendo” as famílias. Isso apenas 50 anos atrás. Só que isso “deu certo” na Argentina, acabou com as comunidades negras lá. Mas aqui, não 

Além de não ter dado certo, o fato de que o racismo era algo ruim de se demonstrar, apesar de latente, fez com que muitos se considerassem negros. Ser negro não é necessariamente pelo tom da pele. Mas aqui é diferente dos EUA. Lá, uma gota de sangue te faz negro; aqui não é assim. 

Contudo, com o tempo, mais pessoas começaram a se declarar negras. Então quando chegou um governo de extrema direita, ele fez com que a luta do movimento negro fosse mais valorizada, reforçada. 

Antes, quando falávamos disso, estávamos de “mimimi”, falavam que a gente só falava disso. Mas quando a coisa se escancara, [quando] vem um presidente e fala claramente sua visão racista, fascista, ele fez com que crescesse, de um lado, a quantidade de pessoas que estavam duvidando que o Brasil realmente fosse algo melhor. Então foi bom para acordar as pessoas que estavam nem lá nem cá, sem prestar a atenção. 

Acho que Deus, a espiritualidade, fez com que aquele senhor estivesse aqui, nesse momento, para dar uma sacudida nesse país.

Eu não acredito muito nessa questão partidária, não. Lá atrás, na época da ditadura, chegavam e falavam “cara, qual é a tua? Você é esquerda ou é direita?” Aí a galera da direita metia o pau em mim, dizendo que eu era comunista; e a galera da esquerda dizia que eu era imperialista 

Porque eu estava fazendo algo que era diferente do que eles achavam que era normal. Então, hoje, eu estou assim. Tenho a convicção de que a gente está caminhando. Estamos ocupando espaços. 

Agora, cabe à nova geração ocupar esse espaço e dar a direção. Aqui, a minha função, a minha geração, é pavimentar isso aí. Já foi feito. Para que a garotada coloque em prática tudo que aprenderam e que estão vivendo. 

O senhor falou de espiritualidade. Como vê, hoje, a influência da religião sobre a cultura negra?
Lá atrás, a grande maioria era religião de matriz africana. Toda a comunidade negra tinha seu pé na umbanda. Por sua vez, houve uma migração dessa maioria da comunidade negra para os evangélicos. 

Naquela época, havia uma união, não havia conflitos entre os umbandistas e a galera evangélica batista. Existia um respeito. Assim, como tinha [com] a galera católica 

Eu, por exemplo, pertenço à Irmandade Nacional do Rosário dos Homens Pretos, que é da Igreja Nossa Senhora do Rosário, que tem aqui no Rio de Janeiro. Mas quando chegou o segmento pentecostal, aí a coisa complicou, porque a postura deles é “a minha é melhor que a sua”. 

É uma postura de demonização. E eles chegaram no seio das famílias – e da criminalidade, dentro dos presídios. Começaram a converter todo mundo. 

Como um evangélico que se diz de Jesus vai lá e depreda um ambiente de religiosidade de matriz africana? Isso é terrível 

Não tenho dúvida que eles estão crescendo. Eles adquiriram o poder econômico e agora estão surfando dentro da seara política. 

Quando se tem o controle da “caneta”, é um problema sério; a ponto do [ex-]presidente [Jair Bolsonaro] colocar um outro [ministro] lá no STF e dizer que ele é “terrivelmente evangélico”… Isso é seríssimo.

Agora, por outro lado, existe uma força ancestral negra reinando sobre este país. Reinando de tal forma que ela nos induz. Eu, por exemplo, sou um soldado da ancestralidade: [os ancestrais] só vão me conduzindo 

A minha missão está dentro, exatamente, da comunicação negra, a partir da música e da imagem. Essa é minha ferramenta. Essa é a minha missão. 

Em 2019, o senhor discursou em Harvard, no ALARI First Continental Conference on Afro-Latin American Studies. Como foi essa experiência? E qual o papel das instituições de ensino superior para contribuir no avanço dos estudos afrolatinos?
Foi incrível, mas eu fiquei um pouco assustado. Não sou acadêmico. Embora eu tenha uma formação em engenharia, fiz um MBA aqui, uma pós ali, não sou um mestre, doutor. Mas aceitei. 

Eu não tinha o conhecimento que, assim como o movimento da música negra americana, direitos civis etc. chegou no Brasil, também chegou em outras partes do mundo. Tive conhecimento a partir de um alemão [Matti Steinitz, professor, DJ, autor, pesquisador associado e coordenador da Black Americas Network, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha], um cara que é acadêmico e DJ, apaixonado por black music, que veio ao Brasil fazer uma entrevista comigo para a sua tese. 

Ele me contou que existe outro local em que a música foi utilizada com identidade cultural como aqui – em Colón, no Caribe [panamenho]. Lá, eles têm o Canal [do Panamá], e ali passavam os navios e vinha uma musicalidade muito forte africana, porto-riquenha, cubana, caribenha… Então, tinha uma identidade black forte. 

Aprendi muitas coisas com esse encontro. Também descobri, por exemplo, que a CIA estava infiltrada dentro do movimento Black Rio. Fui perguntado se sabia disso, e eu disse que desconfiava mas não tinha como provar. Ele [Steinitz] me mostrou um documento do DOPS e me disse “Olha aqui, tinha um jogador de basquete, que jogava pelo Flamengo, e morava na Avenida Atlântica [em Copacabana, no Rio]”. Esse jogador me deu meu primeiro pente afro. Ninguém sabia que ele era infiltrado.

Então foi isso, ele me chamou para falar em Harvard. Eu fiquei um pouco apavorado: por que me querem lá? Ele me disse que eles não têm esse tipo de oportunidade, de falar com os sujeitos da ação. E foi maravilhoso, foi uma conversa linda, eles estavam ávidos por detalhes, por informação

Mas é isso: hoje as universidades estão bem mais pretas. E isso é maravilhoso, alguns anos atrás era impossível. Hoje você tem temáticas, por exemplo, como história comparada. Você é capaz de só fazer história comparada dos EUA com outros países. 

Com realizações e uma vida de contribuições para a cultura negra, o que motiva o senhor a continuar trabalhando e desenvolver novos projetos?
Costumo dizer que sou um privilegiado, porque estou acompanhando todo o processo. 

Eu poderia estar na cadeira de balanço, mas não, eu sou um sagitariano. Estou na plenitude do voo, entendendo a minha ancestralidade, entendendo o meu corpo físico e minha mente 

O que é a vida? A vida é feita de ações, e são várias ondas. Você sabe que vai ter hora que você vai comer areia lá embaixo. E aí, em um centésimo de segundo, tudo pode mudar.

Então, o maior desafio é se manter no foco. Esse é o meu maior problema. Porque gosto de produzir, e gosto de caminhar. Enquanto Deus me der força, vou estar produzindo. É isso que me dá vida.

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