Moda e saúde mental parecem temas totalmente desconectados. Mas foi combinando esses dois universos que Raiana Pires, 29, fundou a Psicotrópica.
A marca de roupas cria as suas estampas com base em obras desenvolvidas por pacientes da rede de saúde mental, com transtornos como depressão, bipolaridade e esquizofrenia.
O propósito da empresa é dar visibilidade e gerar renda para essa população historicamente estigmatizada e marginalizada. Segundo Raiana:
“Mais do que vender roupas coloridas, queremos mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, pessoas em tratamento psiquiátrico ou que passaram por hospitais psiquiátricos têm grande potencial artístico e produtivo e podem sim ser artistas”
O interesse por moda e por questões sociais sempre existiu em Raiana. Enquanto cursava serviço social na Universidade Federal de Santa Catarina, ela mantinha um blog, o Psicotrópica, onde postava referências artísticas e divulgava roupas que ela mesma costurava.
“Em 2012, fiz alguns cursos de corte e costura e, com 2 mil reais que tinha guardados, comecei a fazer e vender algumas blusas para amigas”, diz Raiana. “Era tudo muito caseiro.”
Seu interesse pela questão da saúde mental surgiu alguns anos mais tarde, em 2015, durante um estágio no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), equipamento do SUS focado no atendimento de pessoas com transtornos mentais.
“As oficinas artísticas do CAPS chamavam muito a minha atenção. Vi nos pacientes um imenso potencial e comecei a estudar e entender que a expressão artística pode ser uma grande aliada no cuidado da saúde mental”
Na época, Raiana ficou impactada pela leitura dos livros de Nise da Silveira (1905-1999), psiquiatra pioneira no desenvolvimento da arteterapia.
Naquele mesmo ano, aliás, a vida de Nise ganhou as telas de cinema, com a estreia de Nise: O Coração da Loucura, longa-metragem estrelado por Glória Pires.
No último semestre da faculdade, Raiana descobriu que estava grávida, o que a impulsionou, em 2017, após a conclusão do curso, a se mudar para São Paulo em busca de novas possibilidades.
Nesse momento, ela foi ao Museu Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro, ver uma exposição de obras desenvolvidas por artistas com transtornos mentais e teve a ideia de transformar essas artes em estampas.
O Museu leva o nome de Arthur Bispo do Rosário, grande artista autodidata que sofria de esquizofrenia e passou a vida em instituições psiquiátricas. Ele faleceu em 1989 na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.
O museu que leva seu nome ocupa o edifício sede da antiga instituição e promove encontros e oficinas para pessoas com distúrbios psiquiátricos.
“Quando eu vi os quadros coloridos do Pedro Mota, sabia que eles dariam estampas incríveis para a Psicotrópica e, como o não eu já tinha, resolvi mandar uma proposta para a curadoria do Museu”
Para a surpresa da Raiana, a ideia foi recebida com entusiasmo pela curadoria e pelo artista e acabou dando origem à primeira coleção do Surto Criativo, linha de roupas da Psicotrópica com estampas criadas a partir de obras de pacientes da rede de saúde mental.
As estampas são desenvolvidas pela equipe da marca após a compra dos direitos autorais das obras dos artistas selecionados; o valor varia de acordo com a pintura e com o número de peças que serão desenvolvidas com base nela.
Nessa primeira colaboração, que deu origem a 10 peças, o investimento foi de 20 mil reais do bolso de Raiana, dos quais 5% foram para Pedro Mota.
Nessa época, a produção era realizada em um ateliê montado por Raiana no sótão da sua casa, em São Paulo; dois amigos colaboradores davam uma força para criar as peças.
Juntos, o trio convertia a pintura em uma imagem virtual que, depois, era usada para o desenvolvimentos de peças, como vestidos, calças, saias e blusas. Com a novidade, as vendas, que eram realizadas pelo site, cresceram 30%.
“As pessoas nunca tinham visto algo que relacionasse moda e arte com saúde mental. Acredito que o sucesso da coleção veio pela inovação da proposta e pela identificação do público com o viés social da marca”
Até hoje, foram lançadas cinco coleções do Surto Criativo; cada uma se inspira nas obras de um artista e conta, em média, com 20 peças.
Raiana explica que as coleções dessa linha demoram um ano para ganhar vida. “Além do produto final, queremos criar vínculos com os artistas e entender o que a arte significa para eles – o que demanda tempo.”
Além da linha Surto Criativo, a Psicotrópica vende peças com estampas produzidas a partir de obras de mulheres artistas colaboradoras fora da rede de saúde mental. Essas peças representam metade dos produtos disponíveis.
“É possível, através de um selo digital onde está escrito ‘Surto Criativo’, saber quais peças são dessa linha e quais não são”
Com o crescimento da empresa, Raiana ampliou a equipe que conta com 10 pessoas nas áreas de marketing, redes sociais, vendas, design e financeira. A fundadora se concentra, principalmente, na curadoria de artistas e no contato com instituições.
Além do Museu Bispo do Rosário, o Coletivo Traço, iniciativa do CAPS de São Bernardo do Campo, no interior de São Paulo, também é um aliado no desenvolvimento de eventos e na construção de pontes entre a marca e os artistas.
Criada em 2017, a plataforma Surto Criativo funciona como canal de vendas de obras, como telas e fotografias, produzidas por pacientes da rede de saúde mental selecionados pela equipe da marca.
Hoje, através do site, é possível conhecer um pouco da história de cada um dos 15 artistas que fazem parte do projeto. Como todo dinheiro das vendas vai para os criadores, a iniciativa é bancada por doações e por 1% do valor das vendas da Psicotrópica.
Com o sucesso das coleções, em 2021 a fundadora decidiu investir em novos projetos no Surto Criativo, como encontros e oficinas para pacientes da rede de saúde mental organizados em parceria com as instituições parceiras.
“Normalmente, contratamos um artista para dar a oficina, por exemplo, de graffiti, e, em conjunto com as instituições que cuidam de pacientes, chamamos os interessados. Já pintamos fachadas de escolas e CAPS em São Paulo”
As atividades, destaca a fundadora, são para todos os pacientes interessados, não apenas para os que já são artistas. Desde 2021, o Surto Criativo já realizou cerca de 20 eventos, que pelas contas de Raiana impactaram em torno de 1 mil pessoas.
Diferente de marcas nativas digitais que se estabelecem unicamente no ambiente virtual, a Psicotrópica inaugurou a sua primeira loja física em novembro de 2022 em Pinheiros, zona oeste de São Paulo.
“As pessoas pediam muito para sentirem as roupas e queriam saber as histórias das pessoas por trás das estampas. Nesse sentido, o físico acabou materializando melhor a nossa proposta de criar um vínculo entre os criadores e consumidores”
A partir dessa estratégia, as vendas físicas se igualaram às digitais, atingindo 50% do total, e a marca dobrou o faturamento mensal, que foi de 100 mil para 200 mil reais.
As vendas digitais ocorrem pelo site da marca e são feitas para todo o Brasil, Estados Unidos, Canadá e Europa. Raiana acredita que os clientes internacionais foram atraídos, espontaneamente, pelo Instagram, graças à proposta inusitada da marca.
Nos próximos dois anos, a marca pretende abrir uma loja física no Rio de Janeiro, estado com maior número de clientes depois de São Paulo. Mais para frente, a meta é chegar a Portugal, cliente internacional mais relevante da Psicotrópica.
Raiana conta que o maior desafio que enfrentou na sua jornada empreendedora foi conciliar a construção da Psicotrópica com o cuidado com o filho recém-nascido.
“Pensei em desistir várias vezes. Não tive licença-maternidade, levava ele comigo para tudo, reuniões, encontros… Tive que me dividir entre as demandas constantes dos dois meus filhos: o Gael e a Psicotrópica”
Em paralelo, existia ainda a insegurança natural de criar um negócio inovador, sem referências anteriores. Na época, Raiana chegou a se questionar se fazia sentido unir esses dois temas, moda e saúde mental.
“Era uma ideia muito fora da curva”, diz. “Tive que provar para as pessoas, a partir de encontros e divulgações da marca, que o que eu estava criando era legítimo.”
Com uma longa carreira na indústria do cinema (ele é fundador da Downtown Filmes), Bruno Wainer fala sobre saúde mental e os bastidores da criação de Aquarius, sua plataforma de streaming que acaba de chegar ao catálogo da Amazon Prime Video.
Allan e Símon Szacher empreendem juntos desde a adolescência. Criadores da Zupi, revista de arte e design, e do festival Pixel Show, os irmãos agora atendem as marcas com curadoria, branding, vídeos e podcasts através do estúdio Zupi Live.
Arte e vinho combinam com escritório e dinâmica de grupo? Marcos dos Santos e Nátaly Sicuro acreditam que sim: o casal comanda a Vinho Tinta, que promove eventos para funcionários e clientes de marcas como Boticário, Uber e Nubank.