Machado de Assis é o goleiro. Raoni e Zumbi dos Palmares formam a dupla de zaga; Clara Nunes e Carolina Maria de Jesus são as laterais. Cartola, Belchior e Elza Soares compõem um meio de campo que joga por música. Na frente, o trio de ataque: Paulo Freire, Marielle Franco e Luiz Inácio Lula da Silva.
A escalação soa absurda? Pois na cabeça de Flavio Meirelles, todos esses homens e mulheres são craques e têm lugar certo na sua seleção. E mais: todos levam o 10 às costas, o mesmo número mítico de Pelé, Zico, Rivaldo, Marta e Neymar.
Flavio, 43, é o idealizador da Necas de Pitibiriba, uma marca de camisas que recria o uniforme da Seleção canarinho homenageando personalidades – do presente e do passado – ligadas à arte, à cultura e à vida política do Brasil. Com um claro viés de esquerda.
Não é segredo que nos últimos anos a camisa da CBF se tornou o uniforme “oficial” de quem apoia a direita e a extrema-direita no país – desde as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff até as motociatas de Jair Bolsonaro, chegando agora aos bloqueios e protestos golpistas contra o resultado das eleições de 2022.
A polarização contamina o futebol: na semana passada, às vésperas do início da Copa do Catar, uma pesquisa do Instituto Travessia para o Metrópoles identificou que 26% dos torcedores “pegaram ranço” do uniforme canarinho.
Esquerdista assumido, Flavio resolveu virar esse jogo e resgatar a “amarelinha” como um símbolo de orgulho para a outra metade da população. No peito, em vez do brasão da CBF, cada camisa da Necas estampa uma arte exclusiva com o rosto do(a) homenageado(a), cujo nome é reproduzido nas costas.
Flavio estudou artes visuais e chegou a exibir retratos do Rei Pelé numa exposição na Vila Belmiro, em 2012 (conheça algumas de suas pinturas aqui). Formado em Rádio e TV, trilhou ainda uma carreira na televisão: foi editor do Pânico na TV, de 2005 a 2007, na Rede TV!, e depois teve passagens por Record e Band.
Atualmente, ele se dedica somente à Necas de Pitibiriba, assumindo a criação dos escudos e a confecção das peças. Divide a parte administrativa com a namorada, Beatriz Silva Feitosa, 36. Ela toca o marketing e o contato com os clientes, faz o controle de qualidade, cuida das embalagens, gerencia os envios.
Cada camisa da Necas custa 89 reais, mais frete. Além dos onze nomes citados no primeiro parágrafo, dá para adquirir o uniforme com as estampas de Dandara — guerreira e esposa de Zumbi –, Chico Mendes, Chico Science ou Dona Ivone Lara. Em termos de cores, há o modelo tradicional, a versão azul e outra inteira amarela, sem os detalhes em verde (e, para quem é petista de fato, tem ainda uma camisa vermelha, esta exclusiva do Lula).
A seguir, Flavio conta ao Draft como trabalha para quebrar o monopólio político sobre a camisa da Seleção brasileira:
Como e quando surgiu a ideia da Necas de Pitibiriba?
Eu já tinha ideia de trabalhar com camisetas faz um bom tempo, desde antes da pandemia. Eu sempre estudava, pensava o que poderia fazer, já tinha feito serigrafia, algumas outras coisas, então eu pensava em fazer algo do gênero, mas não sabia exatamente o quê.
Neste ano, eu já tinha [na cabeça] essa questão: politizaram e roubaram de nós o direito de usar a camiseta de futebol. Só que não é do Corinthians, nem do Flamengo: é a da Seleção brasileira, uma camiseta que representa alegria…
Fiquei muito incomodado com isso, e via outras pessoas incomodadas, ainda estão incomodadas… E quis fazer algo que fosse um objeto de desejo dessas pessoas. E também uma forma de protesto político – de unir a arte à política.
A ideia surgiu assim, como um resgate e uma homenagem a essas figuras que são importantes para o Brasil.
O Brasil não é essa loucura que a gente está vivendo, essa inversão de valores… Parece que a História não existe, o que existe é uma realidade paralela.
Isso me deixa muito preocupado como cidadão. Eleição, em democracia, a gente perde e aceita. Digo isso por causa da camisa verde e amarela, que virou um símbolo do ódio…
Além disso, existe uma tentativa de criminalização do pensamento. Por exemplo, a tentativa de criminalizar você ser de esquerda. Ninguém via mais as pessoas usando adesivo ou camisa do Lula na rua, porque tinham medo de ser espancadas… É algo grave o que a gente está vivendo.
Na época eu estava com outro trabalho. A ideia surgiu também como uma forma de tentar fazer um negócio paralelo, para ter outro meio de sobrevivência.
Como foi a aceitação?
Plantei a semente, comecei devagarzinho, e o povo foi gostando da arte que a gente ia divulgando aos poucos, no Instagram… E percebi que as pessoas têm bastante carinho pelas camisetas, isso me deixou muito feliz.
Este país ainda não entendeu a questão de democracia, ditadura… Esse projeto é um desabafo. Uma tentativa de resgatar o orgulho de vestir a camisa da Seleção.
Comecei a fazer as camisas em agosto. As primeiras foram a do Lula, a da Marielle e a do Paulo Freire – eu queria muito essas três, foram o pilar inicial
A partir daí foi difícil [escolher as próximas], tinha uma lista enorme de pessoas maravilhosas para homenagear… E tem que ter o lado político, não é fugir [do tema], essa coisa de “ai, mas tira a política…” A gente tem que falar de política.
Lancei o e-commerce em setembro, já com uma seleção de dez. E coincidentemente saí da empresa na qual estava prestando serviço, então agora estou só trabalhando aqui.
Como funciona o fluxo de produção?
A única coisa que a gente compra pronta de um fornecedor é a camiseta. Fazemos o trabalho da arte, dos nomes e números… A gente faz uma série, pega quarenta e tantas camisetas para fazer de uma vez; tem que prensar, recortar, aí vem o acabamento…
É um trampo, uma coisa bem artesanal. E quanto mais a gente tem feito, mais está ficando mais otimizado, como linha de produção.
Tem uma média de três dias úteis para enviar o pedido; com a demanda, aumentou um pouco… Estamos com um ritmo de vendas bem interessante, buscando aumentar a produtividade, exatamente para entregar mais rápido.
Porque sei que com a Copa o pessoal vai ficar ansioso, na época da eleição foi uma ansiedade enorme para entregar até domingo! A gente mandava por SEDEX, às vezes motoboy…
O pessoal ficou mal acostumado por causa do Mercado Livre: você compra num dia, e no outro está chegando. No nosso caso, é feito sob demanda
A gente informa no site: não somos uma indústria, somos uma pequena empresa…, mas conseguimos atender todo mundo.
É um produto que mexe com o emocional. E está numa fase “para isso”. Então agora é foco total, 100%, estou trabalhando só nisso.
Não sei como vai ser no ano que vem, mas pelo menos até dezembro, com a Copa do Mundo, temos uma boa demanda por esse produto.
Eu queria ter algo que não fosse prestar serviço para alguém, sabe? Queria ter o próprio negócio. Mas não é simples. Deu certo a ideia, o primeiro passo, e estamos felizes com o resultado. Mas se deu certo agora, não quer dizer que deu certo “para sempre”…
Pelo perfil do produto, atrai gente legal, professores… Estamos mexendo com a cultura, então isso é muito interessante.
Às vezes a pessoa pede alguma coisa [fora do portfólio]… “Ah, me faz uma da Cassia Eller”: uma pessoa fez uma encomenda de várias, então a gente acabou fazendo… Mas em geral a gente não faz, atrapalha muito a produção.
Quais as camisas mais vendidas? E quantas você já vendeu, ao todo?
As mais vendidas são a do Paulo Freire, a da Marielle e a do Lula. Agora está vendendo bastante a do Cartola, também. Mas as campeãs são aquelas três, nessa ordem.
A do Lula, depois das eleições, vendeu até um pouco mais do que antes, é interessante isso. Talvez por algum motivo de violência [pré-eleitoral], por não querer se expor por questões políticas…
Desde que começou… Teve algumas que foram para amigos, um comprou dez do Lula… Não tenho o número exato, mas no total já passamos de umas trezentas, talvez quatrocentas [camisas vendidas].
Quanto você investiu para tirar o negócio do papel?
O investimento inicial, para o negócio começar, foi de uns 15 mil reais. Tem o site, o registro do domínio, você precisa comprar equipamento, material, vai comprar as camisetas… Você vai jogar dinheiro fora, porque vai errar camiseta…
Para implementar, [o valor total] chegou a uns 40 mil. É para comprar mais camiseta, mais material, para pagar quem está me ajudando… pagar tudo.
Até começar a vender, foi complicado. Botei anúncio no Facebook, era só hater, só ódio, todo mundo xingando: “que absurdo”, “que inferno”, “filho da mãe”…
No Instagram, é diferente, parece que vai para o público-alvo, então funciona melhor.
Saindo um pouco do negócio: como é a sua relação com futebol e com as Copas do Mundo? E como está a sua expectativa para a Copa do Catar?
Sou corintiano, sempre gostei muito de futebol, até os 17 anos eu queria ser jogador [risos]. Depois, fiz a camisa do time da minha faculdade, a Metodista; era um caranguejo, acho que até hoje é o mesmo [logotipo] que eu desenhei.
A primeira Copa que me lembro de assistir foi a de 1986; depois, quando tinha 15 anos, o Brasil foi tetracampeão [em 1994]. Teve aquela derrota para a França que foi bem bizarra, o vice-campeonato em 1998… E em 2002 [durante a Copa do Japão e da Coreia do Sul], lembro de fazer churrasco às sete da manhã.
O Brasil tem um time muito bom, tem grandes chances de levar… Vou curtir a Copa, mas sei que estaremos com bastante venda, então vamos ter que fazer uns plantões para soltar as coisas [encomendas] de manhã.
Hoje, muita gente dá mais valor, com razão, à política. Acho legal, porque se ganha no futebol, aí vira aquela alegria e a gente vai se enganando, dizendo que somos os melhores do mundo – enquanto continuamos sendo “os piores” em outras coisas…
Espero que o Brasil ganhe, vou torcer muito. Mas prefiro a Amazônia do que qualquer Copa do Mundo.
O que você planeja para o futuro da Necas? E quais serão os próximos personagens homenageados?
Falando em personagens, a ideia é expandir: a gente quer fazer [Carlos] Marighella, [Leonel] Brizola, Darcy Ribeiro… Alguém pediu Santos Dumont. Também já estão na lista Olga Benário, Luís Carlos Prestes, Tarsila do Amaral…
Me pediram [uma camisa] da Gal Costa, ela tinha acabado de falecer… Eu até achei interessante, mas era muito recente, então pareceria um “aproveitamento”. Não seria bonito [naquele momento].
Se tudo der certo, queremos lançar uma linha infantil, no ano que vem. Não com as mesmas imagens, e sim outras, diferentes, para crianças – mas que também tenham a ver com a cultura do Brasil
Estamos experimentando. A gente tem que entender que não pode errar. Com as redes sociais, se você faz uma coisa ruim, perde a marca. E a marca é importante.
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