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Verbete Draft: o que são Neurodireitos

Dani Rosolen / 26 out 2022
Imagem gerada usando a inteligência artificial Midjourney.
Dani Rosolen - 26 out 2022
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Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…

NEURODIREITOS:

O que são: Neurodireitos ou direitos à neuroproteção são um conjunto de princípios que busca proteger a integridade psíquica dos indivíduos, proibindo que neurotecnologias, ou seja, tecnologias que podem acessar e interagir com o cérebro, coletem dali informações, pensamentos e preferências e as utilizem para manipulações ou interferências.

Os neurocientistas que levantam essa bandeira pedem que os neurodireitos sejam inclusive incorporados à Declaração dos Direitos Humanos e os governos estabeleçam leis para evitar abusos.

Pode parecer algo “muito Black Mirror”, mas do modo como as neurotecnologias avançam, ao mesmo tempo que podem ser usadas para curar e prever doenças relacionadas ao cérebro, também podem ser utilizadas para manipular nossas ideias, comportamentos, decisões e emoções, ou seja, “colonizar nossos cérebros”, como cita Ronaldo Lemos em sua coluna na Folha de S.Paulo.

Para dar um exemplo positivo do uso da neurotecnologia, todo mundo deve lembrar do exoesqueleto controlado pelo cérebro, o BRA-Santos Dumont 1, que foi desenvolvido pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis e sua equipe para pacientes com lesão cerebral e mostrado – embora por poucos segundos – ao público na Copa do Mundo de 2014.

Outro caso legal a ser citado é o uso de sinais de eletroencefalogramas para monitorar a carga de trabalho cognitiva de operadores humanos responsáveis pelo gerenciamento de drones e evitar acidentes nos casos em que sejam verificadas condições mentais críticas.

Mas um exemplo negativo é o implante no cérebro de ratos de imagens que eles nunca viram e que acabaram assumindo como ideias próprias e incorporando em seu comportamento natural. O experimento foi feito pelo neurocientista espanhol Rafael Yuste, diretor do Centro de Neurotecnologia da Universidade de Columbia (EUA), principal impulsionador do projeto BRAIN e um dos mais conhecidos criadores e defensores dos Neurodireitos (veja mais no item “Origem”, abaixo).

Aqui vale um parênteses. Não é preciso ir tão longe, entrando dentro do nosso cérebro, para gerar manipulação. Nossos dispositivos móveis, com a geolocalização, as redes sociais e tantas outras informações que damos a diversos aplicativos já permitem isso.

Outro exemplo de mal uso das neurotecnologias indicado por Yuste aconteceria na China, onde escolas primárias exigiriam que alunos utilizassem fones de ouvido para medir e registrar seus níveis de concentração, o que depois seria compartilhado com os pais, sem o consentimento da criança.

Neurodireito x Neurodireitos: Mas antes de entender melhor os neurodireitos, é preciso compreender o que é Neurodireito. “Trata-se da intersecção entre a Neurociência e o Direito”, resume Renato César Cardoso, professor associado da Faculdade de Direito da UFMG e especialista em Neurodireito e Neuroética.

Segundo ele, esta não é uma área nova de estudo. “Desde sempre o Direito se preocupou com essa conexão. Costumo dizer para meus alunos que a gente tem que entender de Neurociência o mínimo que seja, porque ela estuda o mesmo que o Direito. E quando eu falo isso, as pessoas olham esquisito, mas pensa bem, o que o Direito estuda? As pessoas costumam achar que é a lei, mas o que é a lei? Comportamento humano!”, afirma.

Cardoso elabora o raciocínio, explicando que o Direito sempre se perguntou o que passa na cabeça de uma pessoa quando ela comete um crime:

“É essencial a diferença entre um crime doloso e culposo — mas essa diferença não está na ação, mas na intenção. Então, o Direito sempre se atentou para os estados mentais e a capacidade das pessoas”

O conceito de Neurodireito já existe há tempos, mas foi cunhado formalmente só na década de 1990. No artigo “Neuropsychology and Neurolawyers”, o jurista estadunidense Sherrod Taylor utiliza o conceito ao analisar a colaboração no sistema jurídico de neuropsicólogos e advogados em processos que envolviam lesões cerebrais decorrentes de traumatismos para conseguir indenizações às vítimas.

Cardoso afirma que na mesma época, o advogado estadunidense Robert Shapiro utilizava o termo neurolayer para se referir a advogados que utilizavam a Neurociência para coletar meios de provas.

“Por exemplo, usavam um teste neuropsicológico para ver se alguém tinha capacidade de fazer um contrato ou não, para ver como era a memória da pessoa”, afirma Cardoso. “Assim, a princípio, o Neurodireito surge como Neurociência forense.”

O professor ainda conta que o Neurodireito se divide em três frentes. Além da Neurociência no Direito (neurociência forense), há uma área que estuda como são tomadas as decisões juridicamente relevantes, chamada de Neurociência do Direito. Neste caso, são analisadas que áreas do cérebro são ativadas quando alguém toma uma decisão jurídica, como condenadar ou inocentar uma pessoa, por exemplo.

E existe ainda uma terceira área, o Direito da Neurociência. Trata-se da regulamentação jurídica tanto da experimentação neurocientífica quanto da aplicação das descobertas da neurociência. Enfim, é aí que entra o tema do nosso verbete, os neurodireitos.

Origem: Diferente da área de estudo Neurodireito, os neurodireitos por sua vez são um conceito mais recente. O termo foi desenvolvido em 2017 por um grupo de cientistas do qual Rafael Yuste fazia parte, o The Morningside Group.

Em novembro de 2017, num artigo publicado na revista Nature sob o título “Quatro prioridades éticas para neurotecnologias e IA” e assinada por Yuste e pelos outros neurocientistas do The Morningside Group, eles recomendavam os neurodireitos como nova categoria jurídica.

No paper, os autores definem quatro prioridades éticas para as neurotecnologias e a inteligência artificial — e, a partir daí, elaboraram cinco neurodireitos. 

Hoje, Yuste coordena a The NeuroRights Foundation, iniciativa ligada à Universidade de Columbia e impulsionada por uma comunidade internacional de neurocientistas que busca aumentar a conscientização sobre os neurodireitos e os impactos das neurotecnologias.

Quais são os neurodireitos:

1) Privacidade mental: Direito de que os dados neurais só possam ser acessados por motivos médicos ou científicos (e com consentimento), e não por razões econômicas ou para fins de manipulação.

Para os criadores dos neurodireitos, diante das neurotecnologias, a inviolabilidade dos dados neurais não pode mais ser presumida.

Para o professor Cardoso, porém, isto parece ser algo redundante e já garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ainda que ele reconheça, claro, a importância de dar visibilidade ao assunto):

“Quando a lei anterior falava de privacidade, óbvio que não se estava pensando em privacidade mental… mas se temos privacidade postal, se é crime alguém abrir suas cartas, é obviamente crime violar a privacidade mental de alguém”

O professor aponta ainda outra questão: se amanhã surgir uma forma inequívoca de dizer que alguém está mentindo ou falando a verdade, como isso poderá ser usado nos tribunais?

“Me parece que o Estado não pode obrigar uma pessoa a se submeter a uma ressonância magnética funcional, mas e se ela quiser usar isso para se defender?”

Este seria um precedente perigoso, diz Cardoso, porque pode acabar acarretando uma obrigação de todo mundo precise provar que está falando a verdade.

“Sabe aquela coisa do bafômetro? Se você não sopra, necessariamente o ônus da prova é seu. E no Brasil, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.”

2) Identidade pessoal: Direito à capacidade das pessoas de controlarem sua integridade física e mental.

Em outras palavras, é o direito ao “eu”. Isso porque quanto mais conectados estivermos, menos nos reconheceremos como indivíduos.

Cardoso explica que cada vez mais caminhamos para essa ideia de que o self, a nossa identidade, não é uma essência separada do nosso corpo:

“À medida que a gente passa a interagir com tecnologias de interação cérebro-computador —como por exemplo um braço robótico no Japão que me permite movimentá-lo daqui, só usando o pensamento —, as fronteiras do que é o ‘eu’ ficam mais complexas e abrem-se várias possibilidades de manipulação da identidade pessoal. Por isso, esse neurodireito é importante”

3) Livre-arbítrio: Direito de tomar decisões sem interferências de interfaces conectadas ao cérebro, direito à livre agência. Para o professor, esse é um conceito nebuloso, por isso ele tem suas ressalvas.

“Ninguém sabe o que é livre-arbítrio. Se você perguntar para dez pesquisadores, terá dez respostas diferentes. Eu mesmo não acredito em livre-arbítrio, para mim, é uma ideia que não se sustenta.”

Segundo o professor, essa visão de que o livre-arbítrio não existe é compartilhada hoje em dia por muitos filósofos, neurocientistas e psiquiatras.

“Isso [livre-arbítrio] vira uma regra em branco para as pessoas colocarem lá dentro o que quiserem e dizerem que estão violando o livre-arbítrio delas.”

4) Acesso equitativo a tecnologias de melhoramentos mentais: Direito ao acesso justo e igualitário às tecnologias de ampliação mental e cognitiva para toda a população, a fim de evitar novos abismos sociais.

Uma das empresas que promete isso é a polêmica Neuralink, de implantes cerebrais, do igualmente polêmico Elon Musk, que ainda não tem permissão para fazer testes em humanos e falha nos testes com animais.  

“Nós já temos desigualdades demais e precisamos nos preocupar em algumas pessoas terem acesso a melhoramentos e outras, não”, diz Cardoso, sobre a questão do acesso equitativo às neurotecnologias.

Não se trata apenas de oferecer tecnologias de forma igualitária a todos. Segundo o professor, muitos desses “melhoramentos” disponíveis hoje são basicamente medicamentos ou técnicas de estimulação cerebral transcranianas de “fácil acesso”. O que em si também é um risco:

“Não são tecnologias caríssimas, não estou falando de uma prótese cerebral… O que a gente vê é que as pessoas estão sendo empurradas a usar essas tecnologias — como Ritalina, por exemplo —, para fazer um concurso ou no trabalho, porque precisam produzir sempre mais e mais, pois o corpo está virando quase um empecilho

Para ele, é preciso garantir o acesso igualitário, mas sobretudo discutir as condições estruturais que levam as pessoas a buscar esses recursos que estão causando uma série de doenças mentais em grande parte da população. 

5) Proteção contra vieses de algoritmos: Direito à capacidade de garantir que as tecnologias cérebro-máquina não insiram preconceitos e distorções no cérebro das pessoas por utilizarem algoritmos enviesados.

Cardoso também é crítico em relação a esse neurodireito (“a não ser que sejam dados obtidos de informação cerebral, se você conseguir me dizer o que isso tem de ‘neuro’, eu ficaria feliz”, afirma):

“As pessoas confundem inteligência artificial com neurociência, aí colocaram isso numa declaração de neurodireitos. Existem discriminações algorítmicas que precisam ser denunciadas, regulamentadas — mas não é neurodireito

Segundo ele, há muito hype nesse debate. “E olha que eu venho pesquisando isso há muito tempo, deveria ser o mais feliz por essa discussão estar na mídia.”

Onde os neurodireitos já são uma realidade: O Chile foi o primeiro país a sancionar, em outubro do ano passado, uma emenda para contemplar os neurodireitos em sua Constituição.

A lei 21.383 estabelece que o desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e se dará com base no respeito à vida e à integridade física e psíquica. Ela irá regular os requisitos, condições e restrições à sua utilização em pessoas. A norma deverá resguardar principalmente a atividade cerebral, bem como as informações provenientes da mesma.

O projeto de lei chileno foi todo baseado nos estudos do grupo de Rafael Yuste, mas até o momento nada foi feito, segundo Cardoso:

“Hoje os neurodireitos são uma realidade constitucional no Chile e a gente comemorou bastante — apesar de eu ter ressalvas com a proposta chilena — pelo fato de as pessoas começarem a discutir esse tema. Mas corre-se o risco de o Chile ser a primeira Constituição do mundo a decretar os neurodireitos — e a primeira a abolir, ou pelo menos a não colocar isso em prática.”

E o Brasil, onde fica nesta discussão?: O país tem um projeto de lei (PL 522/2022), em análise na Câmara dos Deputados desde março de 2022, de autoria do deputado Carlos Henrique Gaguim (DEM/TO), que visa modificar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com o objetivo de conceituar dados neurais para que só sejam tratados e utilizados com o consentimento dos titulares.

“A ideia é, por exemplo, que quando alguém vá fazer uma ressonância magnética funcional, o hospital que tenha esses dados seja obrigado a anonimizar essas informações, pois com elas é possível reconstruir a face de uma pessoa”, explica o professor de Direito.

Apesar de existir esse projeto, Cardoso ressalta que para muitos problemas já existem soluções jurídicas.

“Para outros, nós não precisamos de uma mudança constitucional, bastam iniciativas como essa”, diz. “Mas são questões que merecem atenção e que cada vez serão mais importantes, terão mais impacto no nosso dia a dia e que a gente precisa discutir e normatizar.”

Regular, mas com cuidado: Por mais que pondere que alguns dos neurodireitos criados sejam redundantes em relação ao que as legislações já garantes, Cardoso acredita que é sim necessário criar um ambiente regulatório, tanto ético quanto jurídico para as novas neurotecnologias, que avançam muito rápido.

Quando se trabalha com Direito e novas tecnologias, o “grande dilema”, afirma o professor, é como entender qual o ponto exato em que uma pesquisa deve ser regulada:

“Se regulamos demais e proibimos demais, matamos a inovação e o desenvolvimento científico… Mas se regulamos de menos, chega um momento em que aquelas tecnologias já estão tão desreguladas que fica impossível voltar atrás — veja como estão hoje muitas das big techs”  

Acima de tudo, para Cardoso é crucial envolver a sociedade neste debate:

“É preciso contar com a participação da sociedade civil que vai ser atingida por essas neurotecnologias para que a gente pense tanto suas potencialidades quanto os limites.”

Para saber mais:
1) No El País: “Por que é preciso proibir que manipulem nosso cérebro antes que isso seja possível”;
2) No ETH Zurich: “We must expand human rights to cover neurotechnology” (artigo do doutor Marcello Ienca);
3) No YouTube, assista ao TED “When technology can read our minds, how will we protect our privacy?”, da bioeticista Nita A. Farahany;
4) No Jota: “Neurodireito: o direito fundamental do futuro”;
5) Também no Jota: “Proteção jurídica de informações neurais: a última fronteira da privacidade”.

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