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Verbete Draft: o que é Bossware

Dani Rosolen / 24 ago 2022
Imagem: Image by Aksa2011 from Pixabay
Dani Rosolen - 24 ago 2022
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Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…

BOSSWARE

O que é: Bossware (boss, “chefe” em inglês, e ware, sufixo da palavra software) é o nome que se dá a softwares de monitoramento instalados por empresas nos computadores e smartphones de seus funcionários em trabalho remoto. O objetivo é claro: monitorar as atividades, identificando padrões, para garantir que o colaborador está sendo “produtivo”.

No Brasil não há dados a respeito, mas uma pesquisa da Digital.com (especializada em análises do mercado de trabalho) realizada com 1 250 empregadores dos EUA em setembro de 2021 mostrou que 60% dessas empresas em regime remoto utilizam algum tipo de programa para monitorar à distância a performance da equipe. Destas, 88% já demitiram colaboradores com base nas informações fornecidas pelos bosswares.

Ainda de acordo com um levantamento mais recente do New York Times, 8 dos 10 maiores empregadores dos EUA monitoram digitalmente a produtividade em tempo real de suas equipes. Segundo o relatório, o que antes era uma prática comum nos empregos de baixo pagamento agora afeta também os trabalhadores de colarinho branco. O artigo traz uma série de depoimentos de funcionários monitorados.

Como funciona essa espionagem?: Além de monitorar as atividades no teclado e no mouse, calculando em tempo real o número de cliques ou digitação, esse tipo de software pode registrar cada tecla pressionada, incluindo senhas privadas.

Os bosswares também são capazes de vigiar o horário em que o dispositivo é ligado e desligado; quais sites ou aplicativos são acessados durante o expediente e quanto tempo o colaborador navega neles; ler e registrar e-mails e postagens nas redes sociais; capturar prints da tela ou até mesmo filmá-la; rastrear a localização do usuário (no caso de smartphones); e captar áudio do microfone.

A partir desses dados coletados (e analisados por uma inteligência artificial), esses softwares medem o que as empresas consideram ser a produtividade dos trabalhadores. Alguns geram, inclusive, por meio de algoritmos, um sistema de pontuação; mas na maioria das vezes o modo como chegam à nota dada aos profissionais é incerto.

Dois tipos de plataformas de bossware: Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Fabricio Barili apresentou sua dissertação justamente sobre softwares de vigilância. “Essas plataformas se dividem em dois tipos principais”, diz o especialista, que é membro do grupo de pesquisa DigiLabour.

O primeiro tipo mede basicamente como as pessoas fazem uso do seu tempo de trabalho, permitindo às empresas contratantes do serviço pagarem aos colaborares apenas pelas horas produzidas.

“Outras plataformas têm enfoque na vigilância de forma mais incisiva: conseguem ver se um email oferece risco e desativam o envio ou cortam o acesso da pessoa à rede social quando identificam que isso está tirando a produtividade do usuário”

Um dos problemas, afirma Barili, é que não dá para medir produtividade apenas dessa maneira. “Esses softwares levam em conta a entrega — mas não a qualidade da entrega.”

Visível ou invisível?: O bossware pode funcionar em modo visível para o funcionário, ou invisível, em segundo plano. No primeiro caso, quando o trabalhador sabe que está sendo monitorado, ele pode optar por desativar alguns recursos do sistema, como a captura de tela, por exemplo. Há aí um porém.

O software contabiliza como hora trabalhada apenas o tempo em que o software de vigilância está ligado. Algumas plataformas ainda dão acesso aos trabalhadores às informações que estão captando, já em outros casos indicam que estão coletando dados, mas não revelam exatamente o quê.

O efeito pandemia: A prática de monitorar o proletariado não é nada nova no mundo do trabalho. “Nos tempos da Segunda Revolução Industrial e do Taylorismo, já existia essa questão de monitorar o quanto o trabalhador produzia a fim de entender como aumentar a produtividade”, diz Barili.

Na pandemia, com o home office, esse monitoramento também passou a ser feito remotamente, através de softwares que prometem aumentar em cerca de 20% a produtividade. Barili lembra um ditado popular. “Sabe aquela frase: é o olho do dono que engorda o gado?”. Pois é. O olho agora é digital.

Com a adoção do trabalho remoto, algumas empresas passaram a fornecer aos funcionários computadores já com o bossware instalado — às vezes sem informar que esse recurso estava ativado. Das empresas mencionadas no estudo da Digital.com, por exemplo, 14% não informaram aos colaboradores sobre a ferramenta.

Em abril de 2020, a procura por softwares de monitoramento de funcionários mais do que dobrou globalmente, assim como também cresceram — em 1 705% — buscas online do tipo “como monitorar empregados que estão trabalhando em casa?”.

Principais plataformas: ActivTrack, CleverControl, FlexiSPY, Hubstaff, InterGuard, Prodoscore, Time Doctor, StaffCop, Sneek e Teramind são alguns dos principais softwares de monitoramento de produtividade disponíveis no mercado.

Quem usa bossware no mundo: De empresas do setor de call center a bancos, manufatura, moda, saúde, empresas de software, enfim, negócios de qualquer área. Nem todas as empresas revelam o nome das companhias clientes.

No caso da Hubstaff, as usuárias são Instacart, Groupon e Ring. A Time Doctor tem em sua lista Allstate, Ericsson, Verizon e Re/Max, enquanto o ActivTrak serve instituições como Arizona State University e Emory University.

A Amazon é a empresa mais conhecida por adotar essa prática, monitorando as pausas e ritmo de trabalho das pessoas que trabalham em seus armazéns e lojas. As ferramentas de espionagem adotadas pela big tech, que vão de softwares, scanners, pulseiras e câmeras de segurança, foram usadas inclusive para tentar evitar a sindicalização dos empregados.

A Microsoft, por sua vez, chegou a desenvolver seu próprio sistema de pontuação de produtividade, mas teria voltado atrás após críticas dos funcionários.

Para 81% das empresas que usam bossware, segundo a pesquisa da Digital.com, esses programas melhoram a produtividade dos seus colaboradores. Muitas delas ainda alegam que o uso não é para espionar os funcionários, mas prevenir roubos de IPs e evitar que dados não sejam roubados ou vazados dos equipamentos das companhias.

“Estudei um caso de uma agência financeira em que usavam o Teramind para evitar que os funcionários usassem ou vazassem números de cartão de crédito”, diz Barili.

Casos de funcionários espionados: Em abril de 2022, o The Guardian contou a história de um jovem analista da Costa Leste dos Estados Unidos. James (codinome usado na matéria) atuava há quase cinco anos em uma grande varejista. Na pandemia, passou a fazer trabalho remoto, recebeu da companhia um laptop — e se surpreendeu quando seu time foi convocado para uma reunião a fim de discutir períodos ociosos, em que os funcionários não estariam inserindo informações no banco de dados da empresa.

Como a companhia detectou essas “lacunas”? Instalando, claro, um bossware nos laptops dos funcionários (sem que eles soubessem) para monitorar as atividades do teclado. O artigo mostra que James percebeu que esses períodos apontados como ociosos seriam as pausas feitas pela equipe para comer ou ir ao banheiro.

Aqui no Brasil, ganhou repercussão o caso de uma trabalhadora do Rio de Janeiro advertida pela supervisora por “fazer cocô fora de hora”. A jovem, que não quis se identificar, relatou ao UOL que foi contratada por uma empresa da Jamaica e logo percebeu que havia algo de errado com o funcionamento do trabalho remoto, porque viu a supervisora que estava dando treinamento vomitar sem desligar a câmera.

Depois, foi a vez de ela própria ver sua intimidade sendo invadida. A mulher passou mal e precisou usar o banheiro várias vezes ao longo do dia; segundo seu relato, ela teria sido advertida por fazer isso fora do “bio break”, intervalo estipulado pela empresa para as necessidades biológicas. No caso dela, que cumpria o turno de 8 horas, a pausa era de uma hora, mas fracionada em 15 minutos de manhã, 30 para o almoço e 15 no período da tarde.

“É importante entender que não é a plataforma que estipula o número de vezes que uma pessoa pode ir ao banheiro, mas as lideranças. A plataforma vai mostrar somente que a pessoa ficou ausente todos os dias de tal a tal hora. Ela possibilita encontrar padrões”

Ainda segundo Barili, embora não haja dados divulgados no Brasil, dá para cravar que alguns bancos usam esse tipo de ferramenta, assim como empresas financeiras e agências de publicidade que terceirizam seus serviços. “Essas empresas têm esse recurso não exatamente para vigiar, mas para pagar as pessoas apenas pelo tempo que estão trabalhando, usando um timer.”

Vale um parênteses sobre outro caso que chamou atenção no Brasil em termos de vigilância (mas sem o uso de bossware): o Jota revelou que juízes concederam a quebra de sigilo da geolocalização de smartphones de ex-funcionários do Itaú, Santander e Via para que as empresas pudessem checar se, de fato, eles tinham feito as horas extras requeridas em processos trabalhistas.

O que diz a legislação: Segundo a reportagem do The Guardian, na maioria dos países a legislação permite às empresas instalarem esse tipo de controle nos equipamentos emprestados aos colaboradores. Na maior parte dos EUA, elas não precisam nem avisar que estão usando este recurso.

Barili estudou sobretudo as plataformas Teramind e Time Doctor. Ele diz que ambas afirmam estar de acordo com as leis de dados, e que, segundo elas, é “um direito das empresas saberem o que as pessoas fazem no horário de trabalho”:

“O que eu acho antiético é a profundidade disso. Uma coisa é saber se a pessoa está ocupada ou ociosa, outra é saber o que as pessoas estão fazendo”

No Brasil, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o monitoramento deve ser limitado a dados relacionados ao trabalho, mas a legislação não diz nada a respeito de avaliação de desempenho por meio dessas ferramentas de vigilância.

Impactos do bossware na saúde mental: A insegurança e a falta de privacidade são duas consequências do uso do bossware. Considerando que muita gente usa o computador (seja ele próprio ou emprestado pela empresa) também para lazer e resolver assuntos pessoais, como ter certeza de que o software não está espionando informações sensíveis, como o uso de senhas bancárias, por exemplo?

E mesmo quando os funcionários estão cientes, o uso do bossware pode resultar em problemas de saúde mental, como ansiedade, burnout, estresse – e, ironicamente, em queda da produtividade. Afinal, quem é que consegue render, ser criativo e ágil sabendo que está sendo monitorado o tempo inteiro?

As métricas fornecidas por esses softwares ainda podem acirrar, de maneira negativa, a competitividade entre os trabalhadores, diz Barili:

“Em uma empresa que usa o Time Doctor, foi colocado em um painel de TV com o dashboard da quantidade trabalhada por cada funcionário. Isso aumentou a rivalidade entre eles, tirando a consciência de classe e enfraquecendo o grupo. Quem sai beneficiada é [só] a própria empresa”

Outro efeito é a queda da confiança nos líderes que se valem do microgerenciamento. E o impacto psicológico não é o único. Os funcionários podem sofrer lesões por repetição ao se verem obrigados a manusear o mouse e digitar o tempo inteiro, além de outras questões físicas por não pararem para se alongar, ir ao banheiro ou beber água.

Os resultados mostrados pelo bossware também podem implicar em demissões injustas. Na Xsolla, filial russa de uma empresa de software e serviços interativos com sede em Los Angeles, 150 funcionários foram demitidos em agosto de 2021, nas cidades de Moscou e Perm, levando em conta a produtividade deles avaliada  por uma inteligência artificial, que decidiu quem era eficiente ou não de forma automatizada (e literalmente desumana).

Barili levanta outro risco: “Quando essas plataformas deixarão de ser somente vigilantes e passarão a vender esses dados sobre o perfil dos trabalhadores para recrutadores?”

Os funcionários contra-atacam: Trabalhadores que descobriram que estão sendo vigiados passaram a usar a tecnologia a seu favor, instalando “mouse movers” ou “jigglers”, equipamentos que simulam o movimento do mouse. Um deles, aliás, tem ironicamente o nome de “Liberty”. Segundo Barili, as pessoas começam a “dialogar com as plataformas e modular o comportamento delas”:

“Vira um jogo de gato e rato. Tem gente que coloca o mouse no ventilador para simular movimento. Existe até o Caffeine, um software que é instalado nas máquinas para não deixar o computador hibernar, e estimular teclas aleatórias… Mas as plataformas de vigilância já detectam esse tipo de artimanha”

Essa dinâmica de “empregados versus software-espião” vai além. Uma pesquisa da Harvard Business Review revelou que, quando monitorados, os trabalhadores tendem a quebrar mais as regras. Um primeiro estudo acompanhou 100 funcionários dos EUA, alguns estavam sendo monitorados, e outros, não. Os que eram vigiados se mostraram mais propensos a fazer pausas não aprovadas, desobedecer instruções, danificar ou roubar propriedades do escritório e a trabalhar em ritmo mais lento — propositalmente.

Para confirmar os resultados dessa pesquisa, um segundo estudo acompanhou outros 200 funcionários e pediu que concluíssem uma série de tarefas. Metade foi informada de que estava sendo eletronicamente monitorada. Em seguida, foi dada a oportunidade de trapacear. E adivinha? Quem eram monitorado estava mais propenso a tomar essa atitude.

A conclusão do estudo foi de que, no geral, as pessoas são motivadas a fazer as coisas certas por medo de ameaça ou possibilidade de recompensa. E, quando monitoradas, se sentem, no seu subconsciente, menos responsáveis por suas próprias condutas.

Como mudar a mentalidade das empresas: O microgerenciamento faz parte de uma cultura de trabalho ultrapassada… Mas, para as empresas que querem continuar usando essas ferramentas, a pesquisa da Harvard Business Review aponta formas de inserir os softwares de vigilância na realidade dos colaboradores, sem que eles se sintam injustiçados.

Uma das maneiras é dar aos funcionários acesso a seus próprios dados. “Essas informações, por sua vez, devem ser usadas ​​de forma a beneficiar os funcionários (por exemplo, para informar iniciativas de bem-estar ou oportunidades de desenvolvimento profissional)”, destaca o texto do estudo.

Outra tática é explicar, detalhadamente, as funções e limitações da ferramenta de bossware, indicando quais dados serão coletados e como eles serão usados. Barili concorda: “É importante que os grupos de trabalhadores definam o que é dado real para ser usado e o que é invasivo — em vez de isso ser uma decisão unilateral da empresa”.

Para saber mais:
1) Na Science, um artigo mostra como uma IA que disfarça palavras com ruídos pode evitar que o bossware ouça o que os funcionários estão falando quando não estão em horário de trabalho;
2) Leia no El País (em português) o texto “50 demissões em um segundo. Assim funcionam os algoritmos que decidem quem deve ser mandado embora”;
3) Confira no site da UNISINOS a tradução do artigo do The Guardian mencionado no verbete.

4) Veja na HBR o texto “How to monitor your employees while respecting ther privacy”.

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