Na terça, 27 de julho, a Share Your Sex, comunidade liderada por Mariah Prado, teve seu grupo banido do Facebook. Foram canceladas sumariamente quase 180 mil participantes e deletados milhares de conteúdos acumulados em seis anos de história.
(ATUALIZAÇÃO: na quarta, 4 de agosto, a comunidade Share Your Sex foi restaurada pelo Facebook. Desejamos a Mariah Prado todo o sucesso com seu empreendimento. Cumprimentamos o Facebook por ter revisto sua decisão e feito a coisa certa. E ficamos muito felizes, aqui no Draft, de ter podido contribuir para que essas 180 mil mulheres continuem podendo conversar sobre sexualidade feminina. Essa vitória não é só da Share Your Sex, mas de todas as sextechs e femtechs que desafiam tabus históricos que pesam sobre as mulheres. Continuaremos atentos. E prontos para atuar sempre que a liberdade de expressão estiver ameaçada. Contem conosco.)
Eis a mensagem recebida por Mariah:
“Seu grupo foi desativado.
“Isso ocorreu porque Share Your Sex viola os padrões da comunidade sobre atividade sexual.
“Incentivamos a liberdade de expressão, mas não permitimos a maioria dos conteúdos que incluem atividade sexual.”
Ou seja: pode falar o que quiser. Desde que não seja sobre – ai, meu Deus! – sexo
E, assim, num clique discricionário, o grupo Share Your Sex foi deletado – desalojando seus membros, gente em número suficiente para encher ao mesmo tempo o Morumbi, o Mineirão e o Beira-Rio.
POR QUE CONTEÚDO SOBRE ORGASMO FEMININO DEVERIA SER MOTIVO DE CENSURA?
E quais seriam os interesses escusos e as atividades ofensivas de Mariah e sua turma?
Dou uma olhada no perfil do Share Your Sex no Instagram, enquanto ele ainda está no ar, e vejo posts como “5 razões para você nunca mais fingir um orgasmo”, “como funciona o DIU de cobre” e “desvendando o orgasmo vaginal”.
E um feed muito prendado, com zero de conteúdo explícito. Artes em tons de rosa antigo, ilustrações fofas e alguns vídeos com a própria Mariah em plano fechado, com seu rosto de menina, falando sobre sexualidade feminina. Tudo muito franco e elegante.
AO SE PAUTAR POR FALSO MORALISMO, AS REDES ASSUMEM POSTURA PRECONCEITUOSA
Ouçamos o Facebook, que encarrega um time de robôs e seres humanos de excluir da plataforma conteúdos nocivos, como notícias falsas, exploração sexual, mensagens de ódio ou violência gráfica.
“Nossa definição de atividade sexual inclui:
– Relação sexual explícita em que os genitais (…) estão à mostra.
– Relação sexual implícita.
– Estimulação de genitais, ânus, mamilos ou seios femininos descobertos.”
Nos Padrões da Comunidade do Facebook, o item 14, “Nudez adulta e atividades sexuais”, estabelece que as restrições existem para não ofender pessoas que se ofendem com isso e para evitar a divulgação de imagens não-consentidas.
Estou totalmente de acordo com a preocupação em não devassar a privacidade de ninguém. Mas não entendo a primeira premissa. Se formos regular a plataforma de modo a não magoar as suscetibilidades de um determinado tipo de usuários, estaremos necessariamente prejudicando todos os demais.
Esse não é um jogo de soma zero, em que é possível agradar a todos. Trata-se de um trade-off em que é preciso fazer escolhas. E essas escolhas definirão de modo indisfarçável os valores, as atitudes e a visão de mundo da plataforma.
Se a liberdade de expressão é um valor, se estamos numa democracia liberal com uma compreensão madura do comportamento humano e do direito das pessoas de fazerem o que quiserem com seus corpos, então o falso moralismo ou a dificuldade pessoal desse ou daquele indivíduo de lidar com um ou outro assunto não pode de modo algum determinar a média das ações
Ao incorporar essa visão curta de mundo, o Facebook acaba assumindo essa carolice e esses preconceitos como se fossem seus.
Nas redes sociais, como em qualquer outro meio de comunicação, cada usuário tem o direito de escolher o que ver e o que seguir – uma razão a mais para que nenhum usuário (ou mesmo uma suposta média dos usuários) se arvore o direito de decidir, a partir dos seus próprios critérios, o conteúdo que outros usuários podem ou não acessar.
Não gostou? Cancela a amizade, deixa de seguir, troca de canal, vai ver outra coisa. É simples.
PELA LÓGICA DAS REDES SOCIAIS, O CORPO E A LIBIDO DEVEM SER VISTOS COMO “OFENSIVOS”
O Facebook esclarece que pode permitir a publicação de imagens de nudez “inclusive como forma de protesto, para conscientização sobre uma causa ou por motivos médicos e educacionais. Quando tal intenção fica clara, abrimos exceções para o conteúdo”.
A mim soa curioso, e notável, que a nudez como autoexpressão, como propriedade privada do usuário adulto, com um direito individual, não seja reconhecida e não esteja contemplada nesse rol de exceções. O corpo humano é “ofensivo”
Digo o mesmo em relação à libido. O Facebook, segundo suas regras, analisa a “intenção” do conteúdo. E se a intenção entre dois ou mais usuários adultos contiver alguma lubricidade? O que a plataforma tem a ver com isso? Cultivar o desejo é crime? Eros é um deus que devemos banir de nossas vidas?
AS DECISÕES DE CADA PLATAFORMA REFLETEM A SUA ÉTICA ENQUANTO EMPRESA
O item 15 dos Padrões da Comunidade do Facebook diz o seguinte: “impomos limites quando o conteúdo dessas discussões [sobre sexo] facilita, incentiva ou coordena encontros sexuais ou serviços sexuais comerciais entre adultos, como prostituição ou serviços de acompanhantes. Fazemos isso para evitar facilitar transações que possam envolver tráfico, coerção e atos sexuais sem consentimento. Também restringimos o uso de linguagem sexualmente explícita que possa gerar abordagens sexuais, pois alguns públicos de nossa comunidade global podem ser sensíveis a este tipo de conteúdo”.
De novo, uma mistura entre a salvaguarda da integridade e da segurança das pessoas (uma medida correta e necessária) e a censura às conversas — absolutamente lícitas — de determinadas pessoas sobre determinados temas, em nome de não bulir com o conservadorismo de alguns usuários
(Além de uma menção preconceituosa à prostituição, que é um negócio como outro qualquer, desde que realizado de forma consentida, segura e justa entre duas pessoas adultas.)
Em um grupo em que você entra por adesão e pode sair na hora que quiser, apenas conteúdos fora do terreno da legalidade deveriam ser barrados.
Eis o ponto: se não é ilegal, pode. Se a lei não exige da plataforma uma medida, então essa medida é uma escolha da plataforma. Que reflete de modo indelével suas crenças e sua ética como empresa.
Tratar o conteúdo do Share Your Sex como um equivalente de conteúdos criminosos, de cunho racista ou fascista, por exemplo, é um absurdo. Uma escolha equivocada não só sob o aspecto conceitual, mas também do ponto de vista de negócios.
Quando a plataforma bane um grupo de meninas que se reuniam para conversar sobre sexualidade feminina, ela está dizendo a essas 180 mil mulheres que elas não são bem-vindas — e que refletir sobre sua própria sexualidade é uma coisa indigna, passível de punição
E ao lhes mostrar a porta da rua, indica que elas devem desenvolver sua comunidade, suas relações, seus negócios, noutro lugar. Como num app – solução encontrada pela Share Your Sex para seguir com suas atividades.
Fica claro o tiro que a rede social está dando na própria nuca em termos estratégicos?
CONHEÇO GENTE NO FACEBOOK QUE TAMBÉM LEVANTA A BANDEIRA DA INCLUSÃO
Tenho amigos que trabalham no Facebook e sei o quanto eles estão sinceramente empenhados na luta pela diversidade e pela inclusão. Inclusive no que refere a questões de gênero, ou relacionadas à sexualidade do indivíduo, ou ainda ao empoderamento das mulheres – inclusive por meio do empreendedorismo.
Fico imaginando o quanto eles devem estar chateados ao ver a empresa segregar um grupo como o Share Your Sex e uma jovem empreendedora como Mariah Prado – 20 e poucos anos, com MBA e especialização em negócios, e pós-graduanda em Sexualidade Aplicada no Instituto Paulista de Sexualidade.
(Caramba, quem em sã consciência enxota um talento desses porta afora?)
OUTRO CASO: A DR. CANNABIS SOFREU COM O CANCELAMENTO SUMÁRIO NO INSTAGRAM
Dias antes, na sexta, 23 de julho, a conta da plataforma médica Dr. Cannabis no Instagram, com mais de 24 mil seguidores, foi retirada do ar sem aviso prévio. Ao tentar acessar a conta, os administradores receberam a seguinte mensagem: “Sua conta foi desativada. Siga as próximas etapas dentro de 30 dias para poder solicitar uma análise”. Outro cancelamento sumário.
Detalhe: isso aconteceu 10 dias antes do II CNABIS – Congresso de Cannabis Medicinal, evento organizado pela Dr. Cannabis, que reuniria especialistas para debater o uso terapêutico dos canabinoides.
O Congresso, de caráter técnico-científico, destinado a médicos, profissionais da saúde e interessados no tema, tinha elegido o Instagram como seu principal canal de divulgação – da mesma forma que Mariah Prado tinha escolhido o Facebook como ambiente para empreender o Share Your Sex.
É muito ruim para startups como a Dr. Cannabis não poderem contar com a rede social que elegeram para ancorar sua comunicação. Mas é muito pior para o Instagram que empresas como a Dr. Cannabis abandonem a plataforma e passem a buscar outros meios para se comunicar
(O perfil da Dr. Cannabis no Instagram foi restaurado na segunda, 26 de julho. E já ultrapassou os 26 mil seguidores. O grupo Share Your Sex no Facebook continuava fora do ar em 2 de agosto.)
QUANDO O TEMA É TABU, AS REDES SOCIAIS TRAVAM A PERFORMANCE DO CONTEÚDO
Não por coincidência, publiquei recentemente no Draft o artigo “Com vocês, a pepeca – plena, poderosa e empoderada”. No texto, eu dizia que “As mulheres nunca estiveram tão à vontade com seu corpo. Essa afirmação do gênero feminino é uma ótima notícia – inclusive para os negócios”.
Ainda no texto, analisei os nomes que cunhamos para batizar a vulva/vagina, pontuei como eles expressam machismo, sexismo e outras discriminações que têm lastimado as mulheres historicamente, e comemorei o fato de a quarta onda do feminismo parecer estar finalmente virando esse jogo – inclusive pela via dos negócios, com a multiplicação das Femtechs e Sextechs entre nós. (A Share Your Sex, aliás, está citada no artigo.)
Também em julho, publicamos uma reportagem sobre a Bem Bolado, um negócio da Economia Criativa, uma startup ligada à cultura da cannabis, engajada no ativismo pela descriminalização do uso, inclusive recreativo, da maconha no Brasil.
(Da mesma forma, já tínhamos dado matéria com a Dr. Cannabis, startup fundada por Viviane Sedola que se dedica ao desenvolvimento do mercado de cannabis medicinal no país.)
Na hora de impulsionar esses posts nas redes sociais, como costumamos fazemos, tivemos alguma dificuldade.
A campanha da matéria que se referia à maconha foi negada no Facebook. No LinkedIn, fomos para análise. E acabamos tenho o anúncio liberado – com distribuição muito reduzida.
A campanha da pepeca foi para análise no Facebook. Acabou aceita e rodou normalmente. No LinkedIn, fomos para análise e outra vez tivemos o anúncio liberado, com entrega pífia.
(Estou curioso para saber qual será o tratamento dado a este post, que une os dois tabus num texto só.)
JÁ PASSOU DA HORA DE DEBATERMOS SEXO E DROGAS LIVREMENTE, COMO ADULTOS
Encerro com votos de que as redes sociais possam atualizar suas políticas para, no mínimo, compreender que sexualidade não é contravenção e que há muita diferença entre apologia a atividades ilícitas e a discussão acerca do uso e dos usos da cannabis em nosso país.
De um lado, não quero ver no Twitter fake news que terminam elegendo um presidente feito de mentiras e de ofensas no país mais poderoso do mundo. Assim como não quero ver o Whatsapp sendo utilizado para forjar uma realidade paralela, alimentada pelo ódio e pela ignorância, capaz de colocar um bufão, um fascista, um estúpido em Brasília
De outro lado, não abro mão do direito à liberdade de expressão e de debate. Nem da ampla circulação de ideias, a começar por aquelas ligadas a temas como sexo e drogas, que precisamos urgentemente tirar das sombras e colocar sob a luz, para melhor os enxergarmos e compreendermos.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Future Health. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
A nossa atenção determina a forma como experimentamos o tempo e a realidade. Por que, então, deixamos que as empresas tratem um recurso tão vital como mera mercadoria? Kim Loeb alerta para os perigos da Economia Extrativista da Atenção.